O ex-chefão da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, afirmou que “é plenamente dispensável, hoje, uma TV pública”. O famoso diretor de TV deu essa declaração durante entrevista ao vivo ao programa Sem Censura, da TV Brasil, na edição do dia 03/09/24.

Segundo Boni, a TV pública precisa cumprir um papel educativo, de “teledidática”. Mas essa função já estaria sendo cumprida por meio da internet.

“Tudo que você tem de informação através da internet já está completo. A única saída para a TV pública é se tornar uma TV que supra algumas coisas culturais, mas que ela se dedique fundamentalmente à educação, e cada vez menos o entretenimento”.

Quando questionado pela apresentadora Cissa Guimarães sobre o descompromisso da TV pública com a publicidade e a liberdade de expressão resultante disso, o “sincericídio” de Boni foi além: “A TV sendo pública, mas sendo do governo… Por que, ela é livre? O quanto o governo interfere na Empresa Brasileira (sic) de Comunicação?”

Mesmo diante dessas críticas, a Diretora de Conteúdo e Programação da EBC, Antonia Pellegrino, não se poupou a publicar em seu perfil pessoal do Instagram uma postagem em que derrama elogios ao ex-executivo da TV Globo. “Para quem é de televisão, receber o Boni é como receber o papa”, escreveu, entre muitas palavras enaltecedoras.

A mensagem é acompanhada por um vídeo, igualmente glorificador da figura de Boni. “Hoje é um dia muito especial, porque a gente trabalhou muito para reposicionar o canal e você vir aqui é tipo uma medalha, [mostra] que deu certo”, diz a executiva.

Tudo isso aconteceu justamente no primeiro dia de paralisação dos jornalistas da EBC, empresa de comunicação pública da qual faz parte a TV Brasil. A greve é uma reação à decisão da empresa de atacar a jornada especial da categoria, prevista na Seção XI da CLT desde 1943.

O Conselho de Administração da EBC, que tem Pellegrino e outros diretores da EBC entre seus membros, aprovou uma proposta de novo Plano de Cargos e Remuneração (PCR). No documento, a direção rebaixa os salários da carreira dos jornalistas na empresa em comparação a outros grupos de trabalhadores, criando um critério de remuneração por hora. Na prática, ao burlar a CLT, considera os jornalistas trabalhadores de jornada parcial, punindo a categoria pelo direito histórico da profissão.

A luta dos jornalistas da EBC hoje pode estar concentrada em torno do PCR, mas o ataque à comunicação pública vai muito além da questão salarial. O jornalismo da EBC foi desmontado: faltam funcionários, faltam chefes, faltam equipamentos e, principalmente, faltam planejamento e controle. As praças de São Luís e São Paulo, a maior cidade do país, seguem com produção próxima do zero. No Rio de Janeiro e Brasília, não é muito diferente. São poucas produções próprias, todas operadas “com toda a precariedade”, como confessou Pellegrino no vídeo-homenagem a Boni. Reportagens, quadros e programas de TV e rádio são elaborados com número reduzido de pessoal, alguns inclusive realizados por apenas uma ou duas pessoas.

Afinal, o esforço da direção e presidência da EBC está concentrado em Brasília, na comunicação governamental e, de resto, no próprio Sem Censura, produzido no Rio de Janeiro, conforme demonstra o perfil da TV Brasil no Instagram.

Isso explica a confusão e o descrédito de Boni sobre o papel da comunicação pública, garantida pelo artigo 223 da Constituição Federal. A função da TV Brasil, Rádio Nacional, Rádio MEC, Agência Brasil, Radioagência Nacional, é criar uma programação e serviço jornalístico que una o entretenimento, jornalismo e educação em contraponto àquele conteúdo oferecido pela mídia privada.

É fomentar uma comunicação alternativa de qualidade imune ao capitalismo de vigilância e desinformação provocado pelas Big Techs na internet. Imune às amarras da publicidade e da busca pelo lucro que tanto ferem a liberdade de expressão e de identidade na mídia privada, como bem lembrou a apresentadora Cissa Guimarães, ao reduzir a ausência do patrocinador a “podemos falar mal de refrigerante”. O objetivo do serviço público de mídia deve ser um só: o interesse público dos brasileiros de todas as idades, classes, raças e regiões, sem interferência comercial, política ou estatal.

E assim, obedecer a missão institucional da empresa: “criar e difundir conteúdos que contribuam para o desenvolvimento da consciência crítica das pessoas.”

A EBC, porém, está muito longe de ser uma “comunicação relevante para a sociedade”, como manda a visão da empresa. Embora ela ainda possa e deva ser relevante, hoje cumpre mais uma comunicação governamental do que pública. O capital humano da empresa segue cada vez menor: o último concurso foi realizado em 2012 e foram implantados dois planos de demissão voluntária depois disso. A programação e conteúdo das TVs, rádios e agências não seguem planejamento ou controle algum. O trabalho consiste em tapar buracos, puxando cobertores curtos e exercendo ao máximo uma comunicação chapa-branca que atenda aos interesses do governo federal e dos ocupantes de cargos comissionados da empresa.

O jornalismo foi desmontado pela atual gestão da EBC: coordenações e gerências foram extintas para criação de cargos nos canais governamentais da empresa e na Diretoria de Produção, chefiada por Antonia Pellegrino. Diretoria que, aliás, optou por ceder o comando de um programa símbolo da comunicação pública brasileira, o Sem Censura, a uma produtora terceirizada, com limitada participação de funcionários do quadro.

Essa predileção pelas pautas governamentais e pelo Sem Censura fica clara nos canais oficiais da EBC e perfis pessoais de seus diretores e do presidente Jean Lima nas redes sociais.

Nossa TV pública segue em frente olhando no retrovisor unicamente a comunicação privada, e não a pública, como referência. Os conteúdos são caretas, engessados, e insuficientemente planejados, seguindo critérios da TV Globo. E, geralmente, uma TV Globo de 20 ou 30 anos atrás, em um trabalho muito mais analógico, sem uma preocupação com uma convergência digital, sem um olhar cuidadoso para a inovação, credibilidade, pluralidade, acessibilidade, diversidade e outros valores tão essenciais para o serviço público de mídia.

Não surpreende, portanto, a bajulação em torno de Boni, demitido da TV Globo há mais de 20 anos. Não impressiona também esses recorrentes pedidos pelo fim da comunicação pública, como repercutiu o ex-mandachuva da Vênus Platinada em plena TV Brasil. Apesar desse desdém recorrente com o trabalho exercido pela EBC, é importante lembrar do papel perene que a Agência Brasil e Radioagência Nacional cumprem nos rincões desse imenso país, ou da Rádio Nacional da Amazônia, que alcança em ondas curtas lugares abandonados pelos veículos privados e mesmo onde a internet não chega. Do destaque às transmissões da Série B, do Brasileirão Feminino de futebol e da programação infantil na TV Brasil. Ou até mesmo da importância da comunicação governamental, suprindo inclusive a grande mídia privada sediada na região Sudeste. Uma função importante, mas não prevista pela Lei 11.652/08, que criou a EBC. Pelo contrário, ela contradiz o princípio de autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão e deveria ser apenas uma prestação de serviço, não um foco central como tem sido tratada.

A pergunta que fica é: qual medalha a EBC está merecendo?

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