Por Joseti Marques, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade de Brasília (UnB). Ex-ouvidora-geral da EBC
A vida tem seu curso, natural ou produzido, mas o fato é que a vida segue e os fatos vão se estabelecendo de acordo com o andar da carruagem conduzida pelas instâncias de poder. Acompanho o sentido da vida; quando chego em uma das tantas estações onde tenho que saltar, sigo em frente e não costumo olhar para trás. A não ser quando a inquietude pelo devir não alcançado vez ou outra atravessa o caminho e me obriga a querer saber, como se o conhecimento pudesse reverter o curso da vida, alimentando o fio da possibilidade cada vez mais tênue de um projeto mais frágil do que a esperança depositada nele.
Buscava outro texto, escrito para outra coisa, quando cliquei em um título que me fez, sem querer, olhar para um lugar há muito arrastado pela enxurrada da vida com seus detritos e cascalhos de poder – O que nos torna singulares. O texto, reproduzido logo abaixo, foi publicado na 3ª edição da Revista do Conselho Curador da EBC, e fala da singularidade de uma Ouvidoria de Comunicação. Naquela época, já havia muitas ouvidorias na Administração Pública, mas ainda não tinha sido homologada a Lei 13.460 que, em 2017, alterou silenciosamente o curso da Ouvidoria de Comunicação Pública, pasteurizando-a de vez entre tantas ouvidorias de serviços. Essa tem sido uma pedra grande que eu custo a contornar para seguir em frente. Volta e meia eu volto lá, mesmo sem ter a intenção.
E já que lá estava, resolvi dar uma olhada para ver como ficou a Norma da Ouvidoria (NOR-104), na qual trabalhei durante meses sem que, pelo menos na minha gestão, houvesse sido aprovada. Qual não foi a surpresa, quando vi que as novas regras estavam completas e muito mais robustas, reproduzindo pontos importantes que constam da lei de criação da EBC; e mantendo a atividade de Ouvidoria Interna, que tenho orgulho de dizer que foi instituída na minha gestão. Mesmo que discretamente no texto, diz a Norma que a Ouvidoria é “integrante do Sistema Nacional de Participação Social (SINPAS), responsável pelo acompanhamento e tratamento das manifestações dos usuários internos e externos dos serviços de comunicação ofertados pela EBC...”. Inevitavelmente, fui então procurar se havia algo referente à Ouvidoria Interna no último Relatório de Ouvidoria publicado (jan./fev. 2025). Sim, está lá e dá para reproduzir aqui sem gastar muito espaço:
Apesar da robustez da Norma 104, a maior e muito mais relevante parte do regramento não aparece no Relatório, que se atém a descrições numéricas percentuais da interação com o público, fazendo referência superficial às reclamações, destacando apenas o histórico problema de sinal de transmissão. Neste caso, números não ofendem a ninguém, mas também não ajudam a Comunicação Pública em quase nada.
No entanto, triste mesmo foi ver que a Ouvidoria da EBC não se reconhece em sua singularidade – a de uma Ouvidoria de Comunicação Pública, que não pode e nem tem como se resumir a percentuais e descritivos burocráticos, como outras de órgãos da Administração Pública. Mas é confundindo-se com ouvidorias do SUS, do INSS e outras operacionalmente semelhantes – sem qualquer demérito ao trabalho desenvolvido pelos ouvidores das demais áreas – que a Ouvidoria da EBC se esquiva de cumprir sua missão.
No Relatório, temos a informação de que a Ouvidoria da EBC coordena “ações de comunicação da Rede Nacional de Ouvidorias (Renouv)”, e que por “realizar atividades fundamentais e recorrentes, foi transformado em Câmara Técnica (CT)”, e que já entregou para a “Ouvidoria Geral da União (OGU) propostas de Plano de Trabalho e de Regimento Interno que nortearão o início dos trabalhos da CT”. E a Comunicação Pública?!
Fiquei sem palavras. A Ouvidoria da EBC não apenas não cumpre como, pior ainda, descumpre as regras estabelecidas nos documentos normativos. Mas presta serviços a outras instâncias que não estão no escopo desta única Ouvidoria de Comunicação Pública do país – a esta, entrega apenas o básico. E dentro desse lamentável contexto, o Relatório também se debruça sobre aquilo que não lhe diz respeito:
A Norma 104, diz que “Toda manifestação sobre matéria alheia à competência da EBC deverá ser encaminhada à unidade do Sistema de Ouvidoria responsável pelas medidas requeridas, exceto quando se tratar de denúncia, que observará rito próprio” – e a Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República possui um canal de atendimento específico, que inclui a função de ouvidoria.
Esse canal, denominado “Fale Conosco”, permite que os cidadãos encaminhem denúncias, elogios, reclamações, solicitações e sugestões, além de outros tipos de manifestações relacionadas ao órgão, conforme se pode ver no próprio site da Secom. O que a Ouvidoria da Comunicação Pública tem a ver com programas, que a EBC veicula para a Secom como prestação de serviços? Está lá na propaganda da própria EBC, que diz que “o Governo faz e a gente leva até você”. Portanto, é problema da Secom e não da EBC recepcionar o público dos canais Gov.
E assim, de mansinho como vem acontecendo com a Ouvidoria da EBC, a Comunicação Pública vai se apagando ou se transformando em outra coisa que não contempla o interesse público.
Segue abaixo o texto a que me referi no início.
O QUE NOS TORNA SINGULARES
* Publicado em 2014, na 3a. edição da Revista do Conselho Curador da EBC
Em 2012, quando da entrada dos primeiros empregados concursados na EBC, fui convidada a fazer uma palestra para o Projeto de Ambientação, com a incumbência de apresentar a Ouvidoria aos recém-chegados. Eu também havia chegado há pouco tempo, em meados de 2011, na função de Ouvidora-adjunta para a TV Brasil. Aliás, éramos todos recém-chegados, a começar pela própria EBC, que mal completara seu quarto ano de existência no cenário da radiodifusão, tendo surgido qual criança que nasce de parto difícil e demorado, exibindo uma marca que a torna para sempre singular entre as demais – é pública. Uma empresa de radiodifusão nascida pública em um país que por mais de meio século aprendeu a ver a si mesmo, a realidade e o mundo pelas antenas da televisão privada.
As experiências profissionais eventualmente acumuladas naquele auditório teriam que ser depuradas para que o novo pudesse surgir em sua singularidade e plenitude, fazendo jus a mais uma conquista de cidadania que se inaugurava com a EBC – o direito à diversidade das fontes de informação e à multiplicidade de conteúdos audiovisuais para a sociedade brasileira. Perguntei àquela plateia, jovem em sua ampla maioria, se havia ali alguém que alguma vez já teria recorrido a uma Ouvidoria.
Os depoimentos foram muitos: cursos de inglês, bancos, INSS… Exemplos que apontavam claramente para duas direções: a da confiança no atendimento de Ouvidoria, e a certeza de que Ouvidorias existem para fazer valer o direito do cidadão em relação à qualidade de serviços e produtos, tanto em empresas públicas quanto privadas. Perguntei então se achavam importante ter uma Ouvidoria de TV, serviço gratuito sujeito à lei implacável do controle remoto. Não houve respostas, mas os olhares questionadores eram um sinal bastante promissor.
Ver TV é certamente parte do processo de acumulação de conhecimentos, principalmente no que tange aos telejornais, que selecionam e organizam os fatos da realidade, formando parte importante da experiência da sociedade e da pessoa. Uma pesquisa da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), divulgada em março daquele ano, revelou que 97% da população brasileira tem o hábito de se informar pela televisão. Toda atividade humana está sujeita ao hábito, e a experiência tanto biográfica quanto histórica é passível de um processo de acumulação. O acervo social do conhecimento acumulado e compartilhado por essa e outras fontes se transmite de uma geração a outra.
Contei então uma história vivenciada – e divulgada – pelo professor Laurindo Leal Filho, Lalo, primeiro Ouvidor da EBC e apresentador do programa Ver TV, na TV Brasil. Em uma visita com seus alunos à redação do Jornal Nacional, da TV Globo, ele conta que ouviu do editor-chefe que ele editava o telejornal considerando um público médio semelhante ao personagem de desenho animado para adultos, Homer Simpson, um engraçado beberrão de personalidade idiotizada, sem princípios, oportunista. Muitos artigos foram produzidos a partir dessa desastrosa declaração do editor-chefe do telejornal que há décadas é detentor da maior audiência no país, não cabendo mais comentários.
Mas, naquele momento, percebi que ficou evidente para os recém-chegados servidores da EBC a importância de cada um deles no processo e a relevância de uma Ouvidoria Pública em uma empresa cuja missão é contribuir para a formação da consciência crítica do cidadão.