Emissora fica em Tabatinga, tríplice fronteira e região estratégica, onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados em 2022. Cessão representa perda para a Comunicação Pública
Sem nenhuma pompa, circunstância ou sequer uma breve menção em matérias na Agência Brasil ou no site da própria emissora, a Rádio Nacional do Alto Solimões completou neste domingo, 15 de novembro, 18 anos de funcionamento ininterrupto. Ela foi ao ar em fase experimental em junho de 2006 e a operação definitiva iniciou em dezembro daquele ano.
A única menção ao fato que encontramos nas páginas da EBC, incluindo o portal institucional, foi na coluna Hoje é dia, que traz as efemérides do mês. Mas, aqui também, a Nacional do Alto Solimões aparece apenas na tabela de datas, não há nenhuma informação adicional.
Na página da emissora, o destaque que consta neste dia 15 é a entrevista dada pelo xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa ao programa Revista Brasil, no dia 28 de novembro. Embora de grande importância, a entrevista não foi dada especificamente à Nacional do Alto Solimões e já fazem quase 20 dias.
Criada em parceria com o Ministério da Integração Nacional e com sede em Tabatinga, o objetivo da emissora era interligar os nove municípios da microrregião (Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Santo Antônio do Içá, Fonte Boa, Jutaí, Tonantins, Atalaia do Norte e Amaturá), com o sinal alcançando toda a região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, com informação, serviços e cultura nacional e regional.
Segundo a descrição da emissora que constava na página da EBC em 2019, a região sofria influência de rádios em espanhol dos países vizinhos.
“A história da rádio começa quando lideranças de toda região do Alto Solimões levantaram uma demanda dos 9 municípios da microrregião para implantar um projeto de rádio que veiculasse informações de cultura, educação e ampliasse a comunicação em língua portuguesa, que a cada dia perdia sua cultura por influência da fronteira com o Peru e a Colômbia”.
Atualmente, a descrição “Sobre a Emissora” que consta na página da Nacional do Alto Solimões é a mesma para todas as sete emissoras da marca Nacional. A do Alto Solimões aparece em apenas uma frase, em meio a informações superficiais sobre todas elas:
“Sintonizada desde 2006, a Rádio Nacional do Alto Solimões mistura informação local e nacional com protagonismo para a região de fronteira”.
Atualmente com apenas duas horas de programação própria no ar e sem potência de transmissores para alcançar de fato os nove municípios da região, a Nacional do Alto Solimões sofre com total abandono por parte da gestão da EBC. São apenas cinco trabalhadores na emissora, que funciona em um prédio emprestado da prefeitura de Tabatinga e não tem contratos nem para o básico de limpeza, manutenção de ar-condicionado e capina do terreno em volta do transmissor.
A direção da EBC alega que não houve empresas interessadas nas licitações abertas para a prestação desses serviços. Com isso, decidiu entregar a gestão da Nacional do Alto Solimões para o Sistema Encontro das Águas, parceira no Amazonas da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP). Porém, a fundação é ligada ao governo do estado, conhecido pelo apoio ao agronegócio e ao garimpo na região, o que gera dúvidas sobre o uso que possa ser feito da emissora da EBC. Sem dúvidas, é uma perda para a comunicação pública.
Confira artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil sobre a entrega da emissora.
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) assinou um protocolo com a intenção de transferir para o Sistema Encontro da Águas, a rede de rádio e TV ligada ao governo do Amazonas, o controle da Rádio Nacional do Alto Solimões, a maior e mais importante emissora de rádio na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, criada pela EBC a partir de um pedido da população local. O anúncio foi feito na segunda-feira 2 de dezembro, mas não foi detalhado publicamente pela empresa federal.
Com isso, o governo do Amazonas, que já domina a comunicação privada, contará com mais um veículo para a comunicação do governador, Wilson Lima (União Brasil). Ele é reconhecido por seu apoio a Jair Bolsonaro e por medidas controversas, como incentivo ao garimpo e o fortalecimento do agronegócio no Amazonas. Importante frisar também que não há participação e controle social no Sistema Encontro das Águas, requisitos da comunicação pública, segundo parâmetros internacionais da Unesco.
Embora a Fundação Televisão e Rádio Cultura do Amazonas tenha um Conselho Curador, não encontramos nenhuma menção ao trabalho do órgão no site institucional, nem mesmo sobre sua instalação. O link da Ouvidoria direciona para o portal do governo federal Fala.BR.
Para entender a dimensão do que significa transferir a mais importante emissora de rádio da tríplice fronteira, resgatamos a entrevista, na última semana de novembro, do Xamã do povo Yanomami, Davi Kopenawa. Ele entregou uma carta à Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, onde relatava a grave situação dos indígenas. O líder detalhou o documento em entrevista ao programa Tarde Nacional, da Rádio Nacional AM Brasília, em rede do Alto do Solimões. Nela, ele falou dos graves impactos do garimpo, que polui rios, derruba matas para instalação de maquinário e espalha doenças.
Será que vozes como a de Kopenawa continuarão a ter espaço quando a Rádio Nacional passar a ser Encontro das Águas? No documento de intenção, a EBC pede que o nome da emissora seja mantido, mas sem nenhuma obrigação por parte da entidade local.
Localizada em Tabatinga, a Rádio Nacional do Alto Solimões é a emissora caçula da EBC. Foi criada em 2006, atendendo a uma antiga reivindicação da população local. A emissora surgiu após um encontro de lideranças da região cobrando uma rádio que transmitisse em português, que divulgasse informações do Brasil, regionais, locais e prestasse serviço, em uma região com pouca cobertura de veículos de comunicação brasileiros e onde a Internet não funciona bem.
A iniciativa foi viabilizada a partir de parceria com o Ministério da Integração Nacional e alcança cerca de 60 milhões de pessoas entre Brasil, Peru e Colômbia, segundo o site da EBC. A emissora era considerada estratégica, por sua localização, em uma região conflagrada, como aponta o líder indígena, por conta do garimpo e do tráfico de drogas, que vem sendo bastante denunciado após as mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips.
Considerando a localização da emissora pública e seu alcance, é uma responsabilidade afirmar que ela desempenha um papel fundamental e indispensável. Sua função inclui informar a população local sobre as ações do governo para protegê-la e sobre outras agendas nacionais relevantes para a região. Esse papel torna-se ainda mais crítico em um contexto marcado pela desinformação, que tem levado à eleição de políticos contrários aos povos tradicionais, aos direitos sociais e à preservação do meio ambiente, afastando-se de ideias democráticas. Quando uma emissora pública não cumpre o seu papel, a propagação da desinformação tende a se intensificar, enfraquecendo o debate público, desorientando a população e contribuindo para decisões políticas que ameaçam direitos fundamentais e a convivência democrática.
Muitas críticas podem ser feitas ao governo de Jair Bolsonaro, que aparelhou a EBC e a utilizou para defender teses estapafúrdias, como a fraude nas urnas eletrônicas e negar a gravidade da Covid-19, inclusive, sobre a população indígena, conforme denunciado em dossiês sobre censura elaborados pelos trabalhadores da EBC e seus sindicatos. Porém, os militares, cientes do papel estratégico da emissora, fortaleceram a estação. E jamais a doariam de mão beijada para um governo de oposição, como faz o PT e o preposto do ministro Paulo Pimenta, Jeansley Lima, presidente da EBC.
O momento é, ao contrário, de fortalecer a Rádio Nacional do Alto Solimões e parcerias com a sociedade civil. Sobretudo pensando em envolver a população da Amazônia, que terá os olhos do mundo sobre si nos debates sobre a COP-30, em 2025.
A cessão é uma grande perda para o sistema público, previsto no Artigo 223 da Constituição Federal, e uma contradição, considerando o projeto de expansão da Rede Nacional de Comunicação Pública, da EBC. O projeto só tem conseguido atrair emissoras de rádio educativas, vinculadas às universidades e instituições de ensino, muitas operando com dificuldade, na web, ou em fase de implantação, longe de entrar no ar.
Recentemente, as Rádios da EBC na Amazônia foram tema de debate entre a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e a EBC. Especialistas confirmaram o potencial das emissoras para estimular o desenvolvimento e combater as desigualdades na região. No evento, o pesquisador em mídia digital André Barbosa Filho, do IBICT, defendeu que o potencial do rádio não se alterou com as revoluções tecnológicas e permanece estratégico. “O que importa é o público que está ouvindo”, disse, na ocasião.
Ao celebrar o Dia Mundial do Rádio, o coordenador de Comunicação e Informação do Escritório da Unesco no Brasil, Adauto Cândido Soares, ressaltou: “o discurso de ódio ganhou muita visibilidade e se expandiu nas mídias digitais. O rádio pode ser usado para dirimir dúvidas, amenizar posições, promover o debate, trazer o contraponto porque o rádio tem a confiança de um público cativo, que é imenso”.
A Rádio Nacional do Alto Solimões interliga, atualmente, nove municípios e serve de ponte de informação e comunicação à população urbana, povos indígenas e comunidades tradicionais da Tríplice Fronteira.
*Aproveitamos para lembrar os dois empregados da EBC, Osman de Oliveira Melo e Francisco Alves de Oliveira, que morreram no acidente da Gol, em 2006. Eles voltavam de Tabatinga, onde trabalharam na instalação do transmissor da emissora.
Publicação original: EBC entrega Rádio Nacional do Alto Solimões para governo que apoia garimpo – Le Monde Diplomatique