Laurindo Leal Filho, Professor da ECA/USP e 1º Ouvidor-geral da EBC
Uma das primeiras vítimas dos golpes de Estado em diferentes países é a comunicação pública. São comuns as cenas de invasões armadas de emissoras de rádio e televisão logo após o anúncio dos golpes. No Brasil, em 2016, não foi diferente. Houve apenas uma adaptação à forma como foi realizada a quebra da ordem constitucional, sem tanques nas ruas, mas com ações de subversão envolvendo os poderes da República, a mídia hegemônica e, sabe-se agora com clareza, as Forças Armadas.
Um dos primeiros atos do chefe do novo regime, Michel Temer, foi acabar com o caráter público da EBC, a Empresa Brasil de Comunicação. Para isso destituiu o seu Conselho Curador, órgão de representação da sociedade na gestão da empresa. Sua composição “respeitava a diversidade geográfica do país e dava espaço às mulheres, aos negros, às pessoas com deficiência, aos índios e também aos especialistas na radiodifusão e na produção de conteúdo. Era um microcosmo da sociedade brasileira influindo em temas, pautas, enfoques de programas e reportagens produzidas pela EBC”. (1)
Cabia à Ouvidoria dar os elementos necessários para que esse trabalho fosse permanente e executado com eficiência. Através dela, as demandas do público chegavam ao Conselho, depois de analisadas, de instruídas com informações obtidas pelos responsáveis por programas ou áreas da empresa e devidamente sistematizadas em relatórios periódicos, apresentados publicamente. Munidos dessas informações, os conselheiros podiam tomar decisões com segurança, atendendo demandas da audiência. Programas e publicações de veículos da EBC tiveram seus conteúdos reorientados, em alguns momentos, como resultado desse trabalho.
A Ouvidoria possuía total independência em relação à direção da empresa, garantindo a ela o exercício da crítica, sem nenhum tipo de restrição. Condição que só era possível num ambiente democrático, imprescindível para o funcionamento da comunicação pública.
A Ouvidoria não foi extinta da forma truculenta como aconteceu com o Conselho. Manteve-se na aparência, mas sucumbiu na prática, tornando-se uma ferramenta a mais no processo de transformação da EBC em agência de propaganda dos governos que se instalaram no poder depois do golpe.
A sociedade não pode ter fechados os seus canais de acesso à comunicação pública, afinal é ela que os mantém com seus impostos. Daí a importância da criação da Ouvidoria Cidadã da EBC, capaz de dar publicidade às demandas do público não contempladas pela Ouvidoria oficial. Ainda que essas manifestações não resultem em transformações nos conteúdos veiculados pela EBC, elas serão importantes como registros históricos deste momento de atropelo da comunicação pública no Brasil.
Mas não é apenas esse o mérito da Ouvidoria paralela. Caberá a ela também manter viva a prática de uma Ouvidoria sem amarras, imprescindível a uma sociedade democrática. Dessa forma, no momento em que a democracia voltar ao país, teremos condições imediatas de retomar a ação independente da Ouvidoria, a partir do ponto em que ela foi interrompida em março de 2018, após o fim do mandato da ouvidora escolhida de acordo com os princípios legais.
(1) L. LEAL FILHO, Laurindo. Comunicação Pública. In: GONÇALVES, Miriam (Org.). Enciclopédia do Golpe, o Papel da Mídia, vol. 2. Baurú: Canal6 Editora, 2018.