Por Lucio Haeser, jornalista e agricultor em Canela, RS

 

Medo. Abatimento. Angústia. Desespero. Estes são alguns dos sentimentos dos gaúchos nas últimas semanas, desde que o estado foi atingido pela maior catástrofe climática da história, neste interminável maio de 2024. Diferente de outras enchentes, que causam estragos e vítimas, mas passam rápido, desta vez o sofrimento é bem mais prolongado e os horizontes de recuperação ainda são incertos.

Nestes dias de prolongada falta de energia elétrica, computadores são inúteis, o sinal do celular é difícil, ou até impossível em muitos momentos, carregar o telefone é tarefa ainda mais ingrata. Acender velas e lanternas é a solução para trazer alguma luz a centenas de milhares de pessoas. Para muitos, como eu, semanas se passaram sem eletricidade.

Com a população acostumada a ter o imediatismo da comunicação pelos celulares, muitas vezes recheada de fake News, só agora muitos se deram conta que, numa situação extrema, causada por mudanças climáticas que serão cada vez mais frequentes, já não possuíam um antigo aliado: o radinho de pilha. Sim, nos últimos anos, toda a responsabilidade da comunicação foi jogada para cima da internet e do telefone celular. Um grande erro. Por mais poderoso que seja um meio, não se pode colocar todos os ovos em apenas um cesto. O Estado precisa garantir um backup de comunicação de alcance nacional que seja independente da internet.

No Rio Grande do Sul alagado, houve uma corrida em busca dos aparelhos de rádio esquecidos em algum canto da casa e campanhas de doações de receptores foram realizadas. Claro, todos querem saber quando a luz ou a água podem voltar. Vai chover mais? O socorro virá? O que os governos e voluntários estão fazendo? Onde buscar ajuda? Em quais ruas e estradas é possível trafegar? Como obter os auxílios emergenciais oferecidos pelo Estado?

Tudo isso está sendo respondido por emissoras de rádio de todo o Rio Grande do Sul em coberturas intensas. E a elas veio se juntar a Rádio Nacional da Amazônia. Solidária, a emissora da EBC direcionou suas potentes antenas para o Sul e espaços específicos foram abertos na programação, normalmente direcionada ao Norte. É claro que a resposta da emissora em ondas curtas tem as suas limitações, sejam técnicas, pela qualidade do som nem sempre em ótimas condições; ou de quantidade de pessoal da equipe jornalística. Mas é uma atitude muito importante num momento em que qualquer ajuda é bem-vinda.

Nas últimas décadas, com a solução da comunicação mundial pela internet, muitas emissões nacionais e internacionais no rádio de ondas curtas deixaram de ser feitas e, em consequência, a maioria dos receptores deixou de contar com essas frequências. Mesmo assim, participando de grupos de radioescutas em redes sociais, percebo uma grande popularização deste público, de pessoas interessadas em ouvir rádio e, em especial, captar sinais de longas distâncias.

Há 20 anos, esses grupos de radioescutas – ainda na era do e-mail – eram integrados por uma ou duas centenas de pessoas de maior poder aquisitivo, que podiam comprar receptores de alta qualidade e instalar antenas que requerem material especializado e espaço em suas casas. Hoje, vemos dezenas de milhares de participantes, com seus rádios baratos exibindo captações da Nacional da Amazônia, da Inconfidência (MG), da Cultura Brasil (SP), esta última em onda média, e outras pelo Brasil afora.

A relação do rádio com a tragédia gaúcha nos leva a pensar mais adiante. Nos mostra a necessidade urgente de inovar o meio rádio, que continua analógico, no 1.0, ao contrário da TV aberta, que é digital desde 2008 e, anuncia o Ministério das Comunicações, caminha para o 3.0. O avanço ao rádio digital deve se dar especialmente nas frequências AM em ondas médias, tropicais e curtas, que fazem parte de um espectro eletromagnético abandonado pelos radiodifusores.

O rádio digital deve ser uma solução a ser perseguida pelo Estado brasileiro pois oferece qualidade de áudio comparável ao FM e tremenda economia de energia na transmissão, entre muitas outras vantagens. Onde hoje existe um canal de áudio, o digital pode oferecer três, mais um de dados. Uma universidade que tenha uma emissora pode dedicar um canal à leitura de livros, por exemplo. O sistema DRM também tem um sistema de alertas de emergência que é acionado apenas para as áreas atingidas, mesmo que o aparelho esteja desligado. E não se limita a questões meteorológicas, mas a questões de trânsito, como o derramamento de cargas perigosas em uma estrada, por exemplo.

Assisti nestes dias 19 e 20 de maio a parte da Assembleia Geral do DRM, evento anual do consórcio Digital Radio Mondiale. Se eu já era entusiasta e defensor da adoção deste sistema no Brasil, fiquei mais ainda. As possibilidades são imensas, inclusive na educação a distância, devido à transmissão de imagens ao receptor de rádio. Dispensa-se a prioridade a cabos e satélites, que podem atuar de forma complementar. A ampliação da Rede Nacional de Rádio, que inclui muitas universidades, deveria ser feita já pensando na adoção do digital.

Podemos imaginar que este é um horizonte distante. Uma longa jornada ainda precisa ser feita, sem dúvida. Mas há um primeiro passo que pode ser dado sem a necessidade de investimentos, basta apenas vontade de executá-lo. Há em Brasília um transmissor de rádio digital em ondas curtas, do sistema DRM, pronto para ser ligado às potentes antenas da Rádio Nacional da Amazônia. Importante lembrar que em ondas tropicais e curtas o único sistema digital existente é o DRM.

O transmissor, de baixa potência, fabricado por empresa de Porto Alegre, foi adquirido com recursos da UnB em convênio assinado pela universidade, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e EBC. Tal acordo vinha sendo gestado desde 2010, quando da criação do Sistema Brasileiro do Rádio Digital (SBRD). Transmissões teste vieram a ser realizadas, a muito custo e enfrentando resistências, apenas entre o fim de 2020 e início de 2021 com resultados altamente positivos na emissão, recepção e consumo de energia ínfimo.

Terminado o período de transmissão experimental determinado no convênio, a então diretoria da EBC determinou a imediata retirada do equipamento de suas dependências do Parque de Transmissões do Rodeador, em Brasília. Também desligou um dos seus servidores, um engenheiro que entende a importância do rádio digital e dava suporte à iniciativa.

Esse transmissor usado no teste está ocioso desde então, mas pode muito bem voltar a ser ligado e ser uma bela amostra do que nos aguarda com o rádio digital. Que se façam as tratativas necessárias entre os órgãos envolvidos. Alguns poderão apontar esta ou aquela dificuldade. Nada que não possa ser superado. Basta ter vontade. Tendo em vista os benefícios que podem ser alcançados, é necessário ter esta vontade.

Certamente também virá a pergunta: de que adianta transmitir rádio digital, quem poderá ouvi-lo? Ora, o que vem primeiro? Se não houver transmissão é claro que nunca haverá recepção. Basta lembrar um exemplo, pois há vários. Quando a TV foi inaugurada no Brasil, quantos receptores havia? Algumas dezenas, comprados pelo próprio emissor. Garanto que hoje há muito mais receptores DRM no Brasil do que o número de aparelhos de TV em 1950, mesmo levando em consideração o crescimento populacional.

E mais: receptores DRM baratos, que podem ser energizados a manivela, ou seja, dispensam até o uso de pilhas, estão chegando ao mercado. Nada mais apropriado ao se pensar em momentos de falta de eletricidade. No início de 2023, representantes de empresa do consórcio DRM esteve no Brasil em busca de fabricantes nacionais. Receptores DRM não excluem as atuais transmissões analógicas, seja em AM ou FM. Portanto, não se trata de substituir o atual sistema de radiodifusão analógico. A questão é acrescentar uma outra possibilidade concreta.

Precisamos garantir comunicação gratuita e de livre acesso em todo o território nacional. Das catástrofes, embora todo o sofrimento, geralmente emergem soluções inovadoras para a melhoria da qualidade de vida. Que, no Brasil, o rádio digital seja uma delas.

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