Um dia após imagens estarrecedoras de pessoas tentando fugir do Afeganistão agarradas à fuselagem de um avião das forças armadas estadunidenses rodarem o mundo, a Agência Brasil publicou uma matéria que explica muito bem a crise que se abateu sobre o país da Ásia Central (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/cientistas-veem-china-com-papel-central-e-nao-creem-em-taliba-moderado).
Nela, o professor de Relações Internacionais da UFRJ Fernando Luz Brancolos e o cientista político João Paulo Nicolini Gabriel, da UFMG, fazem um balanço dos 20 anos de ocupação do Afeganistão pelos Estados Unidos e a falta de legado deixado para o país pelas décadas de violência militar. O saldo da guerra é 2,3 mil militares americanos mortos e mais de 20 mil feridos; 450 militares britânicos e centenas de soldados de outras nacionalidades mortos; mais de 60 mil mortes nas forças de segurança afegãs e quase 120 mil entre civis.
Sem a visão colonial e imperialista costumas da grande imprensa, a Agência Brasil trata da correlação de forças geopolíticas que podem influenciar o Afeganistão daqui para a frente e aponta, inclusive, que o Talibã, grupo que retornou ao poder com o início da retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão, tem apoio de boa parte da população local, principalmente nas amplas áreas rurais do país. Fato que pode ter contribuído para a fácil retomada do poder pelo grupo armado, sem resistência nem do presidente afegão, Ashraf Ghani, que deixou o país antes do Talibã tomar a capital, Cabul.
Buscando reportagens anteriores sobre o tema, encontramos outra avaliação muito boa, publicada em maio deste ano por ocasião dos 10 anos de morte do líder da Al Qaeda Osama Bin Laden (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/especialistas-apontam-enfraquecimento-do-poder-dos-eua-no-afeganistao).
Nela, uma análise quase profética, ou talvez óbvia para quem acompanha o tema de perto, feita pela professora Arlene Clemesha, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP): “Pairam muitas dúvidas sobre a capacidade do governo do Afeganistão se manter após a saída das tropas [estadunidenses]”.
A matéria relembra, inclusive, o papel dos Estados Unidos no surgimento da Al Qaeda, grupo responsável pelos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Ataques que deixaram 3 mil mortos e serviram de motivo para a invasão ao território afegão.
Agências internacionais
Não por acaso, essas duas reportagens são assinadas por profissionais da Agência Brasil. A maioria das notícias internacionais presentes no site da Agência Brasil são replicadas de agências como Reuters ou RTP, com relatos muito mais superficiais e enviesados. Como a que anuncia a chegada do Talibã a Cabul no dia 15 de agosto (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/afeganistao-talibas-chegam-capital-cabul), que narra o fato em quatro curtíssimos parágrafos e ainda acrescenta um apelo à paz feita pelo papa Francisco, sem nenhum contexto nem aprofundamento.
Um pouco maior, a matéria da Reuters que narra o caos no aeroporto de Cabul (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/caos-no-aeroporto-de-cabul-impede-partidas) no dia 16 tampouco aborda de forma imparcial os fatos. Apesar das críticas feitas aos Estados Unidos, elas se resumem à forma como está sendo feita a retirada das tropas, pinçando declarações no Twitter e a veículos da imprensa, e sempre sem contexto cultural. A matéria critica a possibilidade de “os direitos das mulheres evaporarem”, sem dizer o que elas tinham conquistado nesses 20 anos de ocupação.
O anúncio da retirada das tropas foi feito pelo presidente Joe Biden em abril e a Agência Brasil publicou a notícia duas vezes: uma adaptando texto da RTP (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-04/casa-branca-anuncia-retirada-de-tropas-do-afeganistao-ate-setembro) e outra republicando a Reuters (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-04/biden-iniciara-retirada-de-tropas-do-afeganistao-em-1o-de-maio). Ambas trazendo apenas a visão dos Estados Unidos sobre o conflito.
No quente da crise, a ABr publicou diversas notícias sobre o Afeganistão a partir do dia 12, sempre da RTP e da Reuters, mostrando o avanço do Talibã rumo a Cabul (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/talibas-conquistam-10a-cidade-provincial-afega-caminho-de-cabul e https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/taliba-captura-cidades-afegas-de-kandahar-e-herat). No dia 16, após a tomada da capital, as repercussões aumentaram, com uma nota da Organização das Nações Unidas (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/onu-pede-negociacoes-para-criar-novo-governo-afegao), o esforço dos Estados Unidos em manter a segurança do aeroporto de Cabul (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/eua-dizem-estar-focados-em-garantir-seguranca-do-aeroporto-de-cabul), declarações de Biden (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/biden-defende-retirada-de-tropas-dos-eua) e uma nota do Itamaraty, afirmando que não há brasileiros no Afeganistão (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/nao-ha-registro-de-brasileiros-no-afeganistao-diz-itamaraty), esta última sendo assinada por repórter da Agência Brasil.
No dia 17 as repercussões internacionais continuaram, com as declarações do Talibã de que serão mais moderados e admitirão mulheres no governo, trabalho e estudo “nos moldes da lei islâmica” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/talibas-mostram-se-abertos-admissao-de-mulheres-no-governo e https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/taliba-adota-tom-moderado-e-promete-paz-e-direitos-mulheres) e um pedido feito pela Prêmio Nobel da Paz Malala Yousafzai, paquistanesa que sofreu uma tentativa de assassinato por defender a educação das meninas (https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-08/malala-yousafzai-pede-que-lideres-mundiais-adotem-acao-no-afeganistao).
Todas essas matérias de agências internacionais trazem um excesso do ponto de vista eurocêntrico e dos Estados Unidos sobre o conflito no Afeganistão e sobre o Talibã, sem nunca abordar um contexto cultural da religião islâmica nem mesmo as consequências que a ocupação estadunidense teve para a população afegã, sejam elas boas ou ruins.