Além das censuras aplicadas por chefias e editores, denunciadas ao grupo de jornalistas da EBC responsável pelo Dossiê da Censura, outra artimanha de quem detém o poder sobre a linha editorial tem sido a de abarrotar a pauta com temas desimportantes. Tal estratagema pode ser observado em todos os veículos da empresa e a Ouvidoria Cidadã da EBC destaca, abaixo, algumas das matérias que foram produzidas com esse objetivo.

Um dos materiais mais questionáveis foi uma entrevista veiculada no programa Tarde Nacional , no dia 13 de maio de 2021, quando, no ano de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. A data não é festejada pelo movimento negro, por entender que a subjugação e mesmo o genocídio de pessoas negras não se encerraram com o ato e que os avanços na defesa de seus direitos foram alcançados por mérito de lideranças negras, que foram e continuam sendo resistência.

No programa, da Rádio Nacional, ao invés de se franquear espaço a representantes do movimento negro, optou-se por veicular algo totalmente desconexo em relação ao assunto: uma matéria sobre “escravidão digital” (https://radios.ebc.com.br/tarde-nacional/2021/05/psicanalista-fala-sobre-escravidao-digital). A entrevistada, a psicanalista Elizandra Souza, explana sobre a dificuldade de trabalhadores se manterem desconectados da internet, para poder descansar quando a jornada laboral é finalizada. O motivo, explica, é o excesso de demandas dos patrões, que não respeitam o limite de horário do expediente.

A edição do programa também trata do impulso que grande parte da população sente para permanecer online, a fim de que não perca novidades, notícias que estão circulando. No site das rádios, a entrevista foi identificada com três tags: “home office”, “FOMO” (abreviatura, em inglês, que significa Fear Of Missing Out, que significa algo como “medo de ficar por fora”) e a equivocada “Dia da Abolição da Escravatura”). Esta última chega a ser um vilipêndio com a luta social da população negra, até hoje subalternizada e maioria em um país onde o racismo é estrutural.

Há, ainda, outros exemplos, além desse, que consiste no esvaziamento de uma pauta central do movimento negro. Em meados de fevereiro deste ano, a Agência Brasil contava com 30 repórteres de texto. Mesmo com uma equipe extremamente reduzida, isto é, insuficiente para dar conta de apurar os fatos mais significativos de cada dia, a chefia achou por bem pautar um dos repórteres para escrever “Agência Brasil explica: como limpar o cache e o histórico de navegação” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-02/agencia-brasil-explica-como-limpar-o-cache-e-o-historico-de-navegacao).

É útil o conjunto de instruções sobre a limpeza de dados pessoais que os navegadores da internet vão acumulando, à medida que são usados, mas certamente é menos urgente do que desdobramentos de fatos como a desproteção da região amazônica, a intervenção na Petrobras, a queda na faixa etária de vítimas fatais de covid-19 e as declarações do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, sobre não ser necessário que prefeituras se organizassem para garantir a segunda dose da Coronavac, registrados naquela semana. Leve-se em conta também que, para editar a matéria e publicar, é necessário também um editor. Na época, a equipe era integrada por 17 profissionais com essa função, quantidade igualmente baixa para uma agência de notícias que tem como missão a cobertura nacional.

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República, o veículo vem ampliando a quantidade de matérias de serviço, que são aquelas em que se fornecem informações como o caminho para se utilizar determinado serviço público ou assistir a uma apresentação musical ou a uma peça de teatro. Embora esse tipo de matéria tenha sua relevância, quando se encontra em grande número, a ponto de esvaziar a pauta de assuntos de interesse público e que, não por acaso, estão sendo abordados no país todo, há um grave problema. Significa que os critérios de noticiabilidade não estão sendo respeitados, apesar de serem o norte do jornalismo, como o próprio nome sugere.

A Ouvidoria Cidadã da EBC cita, ainda, outros exemplos, bastante autoexplicativos. Um deles é a matéria “Ceia deste Natal será momento de se permitir, diz nutricionista” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2020-12/ceia-deste-natal-sera-momento-de-se-permitir-diz-nutricionista), de 24 de dezembro de 2020. Na lista, outra matéria da Radioagência Nacional, “Amigo secreto virtual garante troca de presentes e afeto neste Natal” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2020-12/amigo-secreto-virtual-garante-troca-de-presentes-e-afeto-neste-natal). Ambas as pautas fogem ao padrão de qualidade que se espera da comunicação pública.

As chefias da EBC, embora frequentemente se vangloriem do aumento no número de cliques, ou seja, acessos aos conteúdos, estão, na realidade, diminuindo o alcance dos veículos ao priorizar pautas frias ou de gaveta, como são chamadas aquelas que tem enfoques em assuntos que não precisam ser publicados imediatamente. Estão, com isso, reduzindo o potencial do jornalismo em dois anos críticos, tanto pela necessidade da população de se manter atualizada como pela infodemia, a pandemia da desinformação, que exige um combate a ravinas de invencionices.

Com a adesão de 257 empregados no Plano de Demissão Voluntária (PDV) finalizado em dezembro de 2018, a EBC passou a ter 1.705 funcionários efetivos. Atualmente, o quadro é ainda menor. Por isso, sem dúvida, é o momento de se eleger bem, sem nenhum equívoco, aquilo que merece ser noticiado.

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