A colunista daFolha de S. Paulo Mônica Bergamo divulgou nesta terça-feira (2) que o apresentador de programa policialesco José Luiz Datena foi convidado pelo presidente Lula para apresentar programas na Rádio Nacional e na TV Brasil, emissoras públicas vinculadas à Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Trata-se de um ataque às lutas pelo direito à comunicação e em defesa de um sistema público que promova direitos. A trajetória de Datena na mídia, marcada por um estilo sensacionalista, manipulador, assentado na criminalização da pobreza e na promoção da violência, vai de encontro à missão de uma empresa pública de comunicação: informar de forma plural, ética e comprometida com a democracia e os direitos humanos.
São apresentadores como Datena os porta-vozes de ideias absurdas como “bandido bom é bandido morto”. Ideias que foram tão repetidas por programas como o seu que se tornaram lugar comum no Brasil, o que ajuda a explicar a naturalização de assassinatos de jovens negros, como o que ocorreu recentemente no Rio de Janeiro. E é exatamente sobre segurança pública que, conforme informações que circulam na mídia, será o programa de Datena nas emissoras públicas. Vale lembrar que essa abordagem já foi objeto de relatório produzido pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que, a partir de extenso monitoramento feito por organizações da sociedade civil, ente elas Andi, Artigo 19 e Intervozes, documentou graves violações de direitos humanos em programas policialescos, entre elas: expor indevidamente pessoas, desrespeitar a presunção de inocência, veicular discursos de ódio ou preconceito, incitar violência e desrespeitar famílias e adolescentes.
A EBC foi criada para funcionar como veículo público de comunicação, com equilíbrio editorial e espaço para diversidade de vozes. Para garantir que não seja objeto de trocas políticas como a que esse movimento de Lula evidencia, não cabe ao presidente definir a programação da empresa, como está estampado no artigo 2º da Lei 11.652/2008. Aliás, a EBC constituiu recentemente um Comitê Editorial e de Programação (Comep), bem como um Comitê de Participação Social, Diversidade e Inclusão (CPADI), ambos com integrantes que foram eleitos e, em parte, nomeados pela própria Presidência da República. Esses comitês não foram sequer consultados sobre a participação de Datena nas emissoras, o que consiste em um flagrante desrespeito à participação social, que só existe por força da reivindicação dos trabalhadores e das trabalhadoras da EBC e dos movimentos sociais.
A situação torna-se ainda mais avacalhada com a informação de que Datena, mesmo apresentando programas na TV Brasil e na Rádio Nacional, continuará a ser visto também na RedeTV, canal privado aberto do qual não se desligará. Será uma excrescência sem precedentes um famoso comunicador atuando simultaneamente em emissoras que concorrem entre si no mesmo mercado de radiodifusão. Uma sucessão de equívocos editoriais, estéticos e estratégicos sob qualquer ótica que se analise.
Como destacaram, em nota, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e os sindicatos dos Jornalistas do Distrito Federal, de São Paulo e do município do Rio de Janeiro, “chega a ser irônico, para não dizer um escárnio, que o governo Lula agora promova a contratação de um aliado de do ex-presidente Jair Bolsonaro, que esteve ao seu lado no momento em que, derrotado nas urnas e encastelado no Palácio da Alvorada, já no fim de 2022, o agora condenado pela trama golpista se recusava a reconhecer o legítimo resultado das urnas, abrindo caminho para episódios que quase desgraçaram a democracia brasileira”.
Além disso, dizem as entidades, ao reafirmar a cultura da violência na mídia na contratação de um novo comunicador, o governo parece virar as costas a um projeto que deveria “inovar e propor à sociedade a oferta de conteúdos educativos, culturais, científicos e de alta qualidade jornalística, tal como claramente define o princípio constitucional expresso no artigo 223 da Carta Magna”.
Durante a transição para o governo Lula, o Grupo de Trabalho sobre Comunicações produziu relatórios que apontaram a necessidade de políticas para a garantia de direitos humanos na mídia. O primeiro relatório diz que “foi constatada a necessidade de o Ministério [das Comunicações] passar a desenvolver a fiscalização sobre a violação dos direitos humanos na radiodifusão, atribuição delegada a ele pela legislação.”. No relatório final, foi proposta “a criação de serviço de atendimento ao cidadão, que poderá receber manifestações sobre os serviços outorgados pelo Estado.”. Nada disso foi feito até aqui. Ao contrário, o Ministério das Comunicações segue em silêncio diante das violações de direitos e, agora, o governo premia um contumaz violador.
Ignorar a disputa ideológica que se dá a partir dos meios de comunicação é um equívoco. O crescimento da extrema direita no Brasil e no mundo não pode ser compreendido sem levar em conta o papel que parte significativa da mídia comercial desempenhou ao longo dos últimos anos. Ao priorizar narrativas sensacionalistas, criminalizar os movimentos sociais e a esquerda e promover falsas soluções para problemas complexos como o da violência, grandes veículos ajudaram a amplificar discursos de medo, pânico moral e desinformação. Constituíram, assim, o terreno para projetos autoritários.
Não à toa, a população brasileira tem regredido a valores morais e políticos muito próximos de três décadas atrás, como constatou o cientista político e sócio-fundador da Quaest, Felipe Nunes, em recente entrevista à Folha de S. Paulo, por ocasião do lançamento de seu novo livro.
Essas “novas velhas” consciências não são erigidas socialmente da noite para o dia. Refletem um tipo de cultura sociopolítica moldada diariamente por narrativas constituídas a partir de aparelhos de hegemonia ideológica como são os meios de comunicação.
Esperávamos que os que hoje integram o governo, tivessem aprendido a lição, após a evidente participação da mídia hegemônica nas articulações que levaram à prisão de Lula e ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Pelo visto, não. Além de não concretizar as políticas reivindicadas pelos movimentos sociais e que constam no próprio plano de governo apresentado nas eleições de 2022 e nos documentos de transição, que deveriam pautar as políticas públicas, mostra-se tacanho no entendimento do que explica e impulsiona a extrema direita. Quem perde com mais esse equívoco é a sociedade brasileira que, em pleno ano eleitoral, sofrerá com a perpetuação de narrativas que em nada ajudam a compreender e a transformar a sociedade.
*Helena Martins é professora da UFC, secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e integrante do DiraCom. Foi coordenadora e relatora do GT Comunicações do Governo Lula de transição.
**Pedro Rafael Vilela é jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante do DiraCom, atualmente é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e presidente do Comitê Editorial e de Programação da EBC. Participou do Grupo de Trabalho que formulou o novo Sistema de Participação Social na Comunicação Pública.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
