Por Carol Barreto – Jornalista concursada da EBC

Não precisa ser nenhum especialista em semiótica para, ao assistir a essa breve peça publicitária, perceber que ela é muito mais sobre a apresentadora Cissa Guimarães do que sobre o “Sem Censura”.

A partir da pergunta “Que Cissa você está se sentindo hoje?”, seguem-se vários takes da apresentadora fazendo caras e bocas. A volta do “Sem Censura” ao seu formato consagrado, que é o que traz Cissa à TV Brasil, passa praticamente desapercebida. Só ao final da peça é que descobrimos que se trata de um anúncio sobre a volta do “Sem Censura”, definido como um programa “icônico”. Porém, se ele é assim tão icônico, por que não trabalhar na chamada imagens de episódios marcantes ao invés de apostar somente nas caras e bocas da carismática Cissa? Mais: por que não apresentar o programa de fato, dizendo que seu foco são as entrevistas e o que ele tem de novo nesse retorno à grade da TV Brasil? Sonegou-se ao espectador, por exemplo, a informação de que Cissa estará acompanhada de três debatedores fixos e outros três em revezamento, o que não é possível saber por essa chamada. Nas redes sociais da TV Brasil há algum espaço para os outros debatedores, com algumas fotos em que eles aparecem e um vídeo para cada um.

Trata-se de uma peça pobre em informação sobre o produto, que “vende” muito mais a apresentadora ex-global do que o próprio programa que ela comandará. Para mim, trata-se de uma lógica estranha. No jornalismo, aprendemos que, por mais que o profissional seja gabaritado e reconhecido, o centro das atenções deve ser sempre a notícia. Jornalista que quer aparecer mais do que o fato que está noticiando costuma se ver em maus lençóis. Apesar de a análise ser de apenas uma peça publicitária, não creio que a publicidade e o conteúdo promocional de uma TV pública devam ser esse vazio de informação, quase um meme pronto.

Essa peça me lembra as dancinhas constrangedoras dos participantes do BBB na chamada do programa. A TV pública pode e deve fazer melhor que isso. E – pasmem – dá até para apresentar o programa dando o merecido destaque à sua apresentadora! Não precisa ser uma coisa ou outra. Elas podem e devem caminhar juntas. A meu ver, essa chamada personalista apequena não apenas o programa, que se afirma ser icônico, mas também a própria apresentadora que tanto quiseram destacar. Cissa tem tamanho profissional suficiente para não precisar disso. Em uma palavra, ficou over. Isso para não falar da estética da peça publicitária, que me pareceu bastante ultrapassada, com cara de SBT dos anos 90.

Antes que alguém me acuse de estar de má vontade com o “Sem Censura”, digo de antemão que acho fundamental o retorno do programa à grade no formato que o consagrou e não como aquele fantasma governista que tivemos sob a administração de Bolsonaro. Acho que a figura da Cissa agrega sem dúvida ao programa – muito embora discorde do tamanho e da forma de contratação da entourage de 13 pessoas, que receberão altos salários para produzir esse programa enquanto os profissionais da casa – que também trabalharão nele – ganham muito menos. Isso é terceirização, mas como esse texto não está dedicado a debater as questões trabalhistas, vou me ater ao conteúdo.

Retomando o raciocínio, eu espero que o programa seja um grande sucesso – até porque foram investidos nele 5 milhões de reais por apenas uma única temporada. As demais produções da casa estão muito longe dessa “realidade ostentação”. A Rádio MEC passou, no ano de seu centenário, dois meses sem locutores no ar porque os contratos não foram renovados. Isso para citar um único exemplo num imenso e triste oceano de vários outros. O orçamento total da maioria das emissoras públicas estaduais não chega a 5 milhões de reais. Trata-se de um investimento grande demais para dar errado e resta a torcida para que sobre algum orçamento para o resto da programação e as demais áreas da empresa, como o hoje paupérrimo jornalismo.

Não se trata aqui, portanto, de alguma implicância minha com o “Sem Censura” em particular. O objeto do meu questionamento é uma lógica que parece ter colonizado a programação da TV Brasil. Antes o personalismo estivesse só na divulgação do “Sem Censura”, com a exposição exagerada de uma apresentadora que pelo menos é, de fato, uma celebridade. Só que na cobertura de Carnaval da TV Brasil teve “Camarote do Muka”, por exemplo. Temos ainda um excelente programa de entrevistas cujo nome também foi capturado pela lógica do personalismo: “Dando a Real com Demori”. Em que pese o fato de Leandro Demori ser um jornalista reconhecido por quem acompanha o meio, também creio ser desnecessário atrelar o nome do programa a ele. Inclusive porque contratos acabam e eventualmente podem não ser renovados. Se isso acontecer, o que se faz? Mata-se o programa? Uma das razões que tornam o “Sem Censura” tão icônico – para usar a palavra da moda – é o fato de já ter trocado de apresentador algumas vezes e, mesmo assim, seguir seu caminho tranquilamente – descontando-se, é claro, os anos de governo Bolsonaro.

Todo esse personalismo já seria esquisito em emissora privada. Numa TV pública é uma aberração. Somos financiados com dinheiro do contribuinte não para promover indivíduos – sejam eles celebridades de peso, médias, subcelebridades ou nem isso. Existimos para colocar no ar uma programação de qualidade, que estimule o senso crítico das pessoas. E não para ser vitrine de quem quer que seja – seja ele famoso, carismático, grande apresentador ou até mesmo diretor da EBC. A falta de projeto para a comunicação pública da atual direção da empresa salta aos olhos. Só não vê quem não quer. Eu, mesmo preferindo ver um cenário diferente, sou escrava do que meus olhos enxergam, que é essa realidade: uma direção fraturada por distintos interesses, sendo muito poucos deles públicos de fato. Cada um autocentrado em suas próprias metas, quase todas de caráter individual. Antes de servir à EBC, servem a si mesmos – e a suas patotas, frequentemente penduradas em cargos de alta remuneração ou contratos excessivamente vantajosos. Para quem luta há anos pela consolidação da empresa e da comunicação pública no Brasil, haja resiliência – outra palavra da moda – para lidar com esse cenário.

 

A privatização que nos corrói por dentro

Dentre as muitas carências da EBC hoje, uma das maiores, depois da falta de um projeto que guie a empresa como um todo, é a de clareza de que somos uma empresa pública. O ex-presidente Hélio Doyle vivia por aí dando entrevistas, a torto e a direito, questionando a eficiência dos trabalhadores concursados e defendendo abertamente a terceirização. Rei morto, rei posto… pero no mucho! Algumas de suas lamentáveis ideias, como essa da terceirização, seguem florescendo a passos largos na empresa. É o que se vê no contrato do “Sem Censura”. Em um de seus anexos, temos uma pérola do elitismo pseudoartista. Está escrito, com todas as letras, nada menos que:

“É importante ressaltar que não é apropriado comparar os salários dos empregados concursados da EBC, que têm formações e atribuições específicas no âmbito jornalístico e técnicos de formação acadêmica, com os profissionais do mercado artístico do audiovisual. As habilidades e aptidões necessárias para atuar no mercado artístico muitas vezes não podem ser adquiridas por meio de formação acadêmica ou treinamento interno em uma empresa pública. Logo, não há que se falar em formação ou capacitação interna ou externa para transformar um empregado concursado em um profissional artista. São características intrínsecas ao indivíduo, desenvolvidas no contexto do mercado artístico, muitas vezes por nascer em ambiente artístico, ter parentes artistas, ou por tornar-se um YouTuber, TikToker, influenciador, comediante (stand up), apresentador de programas de televisão ou entrevistador reconhecido pela mídia. Esses profissionais frequentemente se destacam pelo alcance em redes sociais, carisma e experiência no mercado, aspectos que não se alinham às funções e critérios de contratação de concursados da EBC”.

Poucas vezes na vida li algo tão cretino em tantas dimensões. É elitista, presunçoso e um verdadeiro manifesto contra o caráter público da empresa. Essa gente, que seguramente nunca ouviu falar em princípio da impessoalidade, se arvora uma autoproclamada aptidão artística – que pode vir de berço, inclusive, segundo o texto – para colocar, a si e à sua patota, em posições hierárquicas e com salários muito superiores aos de quem entrou na empresa pela porta da frente, que é o concurso público. Numa bizarra tentativa de justificar o injustificável, advogam em causa própria a tese de que eles e seus amigos seriam donos de um dom artístico, uma espécie de aptidão inata inalcançável a nós, meros funcionários públicos mortais. Eles seriam “intrinsecamente” – para usar uma palavra do texto – destinados a ganhar altos salários. Quase uma casta artística. E nós, concursados, por essa linha de raciocínio, seríamos, também “intrinsecamente”, destinados a ter baixos salários e quase nenhuma valorização profissional. Tem tantos problemas nesse “raciocínio”…

Em primeiro lugar, é presunçoso afirmar que o que fazemos diariamente em rádio e televisão é arte. Fazemos radiodifusão. No caso da EBC, deveríamos fazer radiodifusão pública, mas quem escreveu esse texto passa longe de saber o que é isso. Eventualmente, dialogamos com a arte, havendo por certo, em algumas produções, certa dose de fazer artístico, ainda que quase sempre tangencial – o que particularmente não vejo acontecer no “Sem Censura”, a não ser a partir da contribuição de eventuais convidados do programa. Além disso, a ideia de fazer artístico como dádiva divina não convence. Claro que existe talento, mas precisa de trabalho, esforço, suor, técnica, aprendizagem. Porém, na cabecinha de quem escreveu esse texto, trata-se de algo que só sua tchurminha possui e que nós, funcionários públicos, não teríamos capacidade de aprender – e muito menos habilidade inata, já que somos plebeus mal-nascidos. É uma defesa repaginada do bom e velho trem da alegria, felizmente sepultado pela Constituição de 1988. Com uma pegada cult bacaninha marota para parecer novidade, defendem algo tão carcomido de velho quanto a farra das indicações de amigos no serviço público. Reeditam um filme ruim que todo mundo na EBC já assistiu nos mais variados governos, colocando uma empresa pública a serviços de interesses para lá de privados.

Reiteradamente vemos pessoas sugarem tudo o que podem e ir embora no final do governo, na maioria das vezes não deixando para trás qualquer contribuição digna desse nome. São bem-mandados também, no que certamente a gestão da EBC vê neles uma outra vantagem sobre nós. Concursado opina, questiona, critica e eventualmente se nega a fazer o que lhe mandam quando isso vai contra o interesse público. Para isso ele tem a tão odiada estabilidade, que hoje tem detratores à direita e à esquerda, mas que existe para proteger as políticas públicas de Estado de desmandos de governos transitórios. Muitos de nós sabemos como e a que preço resistimos a um sem-número de descalabros nessa empresa durante o governo Bolsonaro. Sem estabilidade, luta e resistência, contando também com a sociedade civil, por meio da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, estaríamos no olho da rua e a empresa extinta. Um serviço público essencial deixaria de ser prestado.

Essa pequena política de troca de favores e cabide de empregos para a patotinha só enfraquecem o caráter público da EBC, nos fragilizando sobremaneira quando vem um governo fascista, como vivenciamos recentemente. Afinal, se a esquerda acomoda sua patotinha na máquina pública dessa forma, os fascistas farão o mesmo quando tiverem oportunidade – outro filme sombrio que também já assistimos recentemente. É triste constatar que a EBC, que precisava se consolidar neste governo, segue à deriva. É claro que as coisas melhoraram em relação ao governo Bolsonaro, mas isso não dá a ninguém o direito de exigir nenhuma medalha, né? Ser melhor que um governo fascista é o mínimo da obrigação. Só que para consolidar a empresa e a comunicação pública no país, precisa de mais do que isso. Os interesses privatistas de diversas ordens que nos assolam atrapalham, e muito.

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