A avenida Paulista foi palco, no último domingo (25), de ato convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, numa tentativa, já meio desesperada, de mostrar força social e política diante do avanço das investigações da Polícia Federal (PF) que o apontam como cabeça de uma conspiração que levou a cabo uma tentativa de golpe de Estado no país. Essa tentativa, todos sabem, se materializou nos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, mas já era debatida internamente no governo meses antes, inclusive com circulação de uma minuta de decreto de Estado de Defesa, que tinha planos de anular o processo eleitoral e efetuar prisões ilegais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre outras arbitrariedades.

O ato de domingo, uma verdadeira micareta golpista, foi cuidadosamente mobilizado para evitar a repetição de pedidos explícitos e ilegais de intervenção militar e ameaças contra STF e políticos de esquerda (especialmente Lula) que sempre estampavam faixas em todas as manifestações pró-Bolsonaro dos últimos anos. Desta vez, houve um tom religioso mais predominante, mas alguns vídeos na internet mostram o perfil dos apoiadores, na maioria pessoas brancas e mais velhas, em falas desconexas sobre uma inexistente ameaça comunista, em defesa de Israel “cristão” (sic) e vocalizando discursos preconceituosos e negacionistas amplamente conhecidos. Um repórter que se dedicasse (e tivesse estômago) para entrevistar esses apoiadores possivelmente arrancaria barbaridades cognitivas sobre a concepção de “democracia” e “liberdade de expressão” ali compartilhadas.

Independentemente da análise que se possa fazer sobre o tamanho e o impacto político do ato, que, sim, reuniu dezenas de milhares de pessoas e lotou cerca de quatro quarteirões da principal avenida de São Paulo, trata-se de um acontecimento político inquestionável e que não pode ser ignorado como notícia que é, por qualquer critério de noticiabilidade que se possa pensar (representatividade dos atores políticos presentes, dimensão do ato, conjuntura política em que ele acontece, etc.). Vale dizer que governadores alinhados ao bolsonarismo, e de estados importantes, como o próprio governador de São Paulo, o de Minas Gerais, Goiás e Santa Catarina, além de diversos parlamentares, estiveram no ato. Mais do que apoio puro e simples, são políticos que buscam extrair benefícios de se ligar à imagem de um ex-presidente golpista, mas inegavelmente popular entre uma parcela muito significativa da população.

Lamentavelmente, no entanto, os veículos públicos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), numa postura decepcionante, flertaram com uma tentativa de quase silenciar sobre o ato. Até às 22h de domingo, ou seja, pelo menos 7 horas após o início do ato, quem buscasse informação nos diferentes veículos da EBC (Agência Brasil, TV Brasil e Rádio Nacional/Radioagência Nacional), nada encontraria. Eis que, após esse horário, surge uma matéria na agência pública de notícias, com seis parágrafos, inicialmente sem assinatura. O texto faz o que se chama no jargão jornalístico de “um registro”, apenas para constar, com alguma contextualização, mas sem sequer apontar aspas do discurso do Bolsonaro (que, diga-se de passagem, admitiu a existência da tal minuta golpista), de outros oradores ou mesmo do que pensam seus apoiadores. Também não houve inclusão de aspas de políticos opositores ao bolsonarismo avaliando o ato.

No dia seguinte, na segunda-feira (26), mais nada se repercutiu sobre o ato ao longo da manhã, enquanto, na internet, seja em sites de notícias ou redes sociais, o tema ainda fervilhava, especialmente por conta de avaliações pró e contra a micareta golpista e seu real tamanho em número de participantes. Integrantes do governo federal, incluindo o próprio presidente da República, decidiram não comentar a manifestação. Sorte da EBC, neste caso, pois se Lula ou ministros tivessem decidido falar sobre o ato bolsonarista, obviamente para criticar, os veículos públicos ignorariam essas aspas? Muito provavelmente não, o que revelaria um procedimento desequilibrado e oportunista do jornalismo público.

Não se sabe de quem partiu a decisão de só dar a notícia tarde da noite, e apenas na Agência Brasil, de forma quase protocolar, ou se a decisão era não dar nada, e depois mudou-se de ideia (já avaliando que era um erro ignorar). Equipes de reportagem de São Paulo receberam a orientação de acompanhar o ato, mas só escrever matéria se alguma coisa “extraordinária” acontecesse, seja lá o que isso signifique, jornalisticamente falando.

No primeiro jornal da TV Brasil, que vai ao ar na hora do almoço, o Repórter Brasil Tarde (RBT), o espelho do telejornal (programação das matérias vão ao ar) não previa nada sobre o ato. “A ordem veio de cima”, foi dito à equipe, sem mais. No entanto, surpreendentemente, faltando menos de uma hora para ir ao ar, “brotou” uma notinha curta sobre o ato na Paulista. Naquela altura, já havia um certo mal-estar na redação pela decisão de ignorar o ato, o que provavelmente contribuiu para a mudança de ideia.

No Repórter Brasil Noite (RBN), o tema entrou na escalada do jornal, com destaque para a intenção da Polícia Federal usar o discurso de Bolsonaro, durante o ato, para corroborar as investigações de golpismo que pesam contra o ex-presidente. Na reportagem, na verdade uma nota coberta com menos de um minuto, é destacada a participação de outras autoridades no ato e a negativa de Bolsonaro de ter intenções golpistas, apesar de admitir a minuta, e o fato de ele ter se tornado inelegível no ano passado.

Já no radiojornalismo, veiculou-se duas notinhas curtas e sem aspas ao longo do dia com o registro dos atos. No final da tarde, uma matéria adicional trouxe a informação, obtida em off, ou seja, sem identificação da fonte, sobre a Polícia Federal. Aliás, a admissão da existência da minuta do golpe e o pedido de anistia dos golpistas presos foi o principal ponto do discurso de Bolsonaro, que deveria ter sido manchete das matérias veiculadas. Mas nem isso ocorreu.

Os jornalistas da EBC acumulam uma triste e desgastante experiência recente de intervenção no jornalismo público, com centenas de casos de censura, governismo, perseguições e intimidações promovidas durante o governo Bolsonaro, uma mancha na história da empresa. Esses ataques foram respondidos com bravura e resistência, que deu aos funcionários e funcionárias, que se opuseram à censura, um mérito especial, em 2022, que foi o recebimento do prêmio Vladimir Herzog de Contribuição ao Jornalismo. O prêmio Herzog é o mais prestigiado reconhecimento, no país, a jornalistas e profissionais da comunicação que atuam em defesa da democracia, da paz, da justiça e dos direitos humanos.

Não dá para cravar que foi uma deliberada censura, como as que vimos em anos anteriores, pois houve registros, ainda que curtos, do acontecimento. Ocorre que, claramente, houve atrasos inexplicáveis em publicações, sonegação de informações e minimização/restrição dos fatos, posturas anti-jornalísticas que não combinam com o que se espera de uma boa comunicação para a cidadania. Já vimos isso em “outros carnavais”. O “cliente” (e o dono) da EBC é o próprio povo brasileiro, em toda a sua diversidade, inclusive, ideológica.

Ao reivindicarmos que a atual direção da EBC não repita – nem mesmo flerte – com os erros graves de um passado recente, não propomos que a empresa seja correia de transmissão do golpismo latente que se viu na avenida Paulista. Pelo contrário. Notícia é notícia e ignorar ou tratar com desdém um acontecimento importante não evita que ele esteja no debate público – como esteve -, como também retira da EBC o protagonismo de incidir nesta esfera pública, ressaltando justamente o caráter antidemocrático do conteúdo associado a essas manifestações.

O bom jornalismo, especialmente o bom jornalismo público (feito com mais responsabilidade social), deve veicular notícias e reportagens que abordem acontecimentos de interesse da sociedade de forma contextualizada e crítica, com pluralismo de ideias e defesa de princípios éticos e democráticos. A comunicação pública deve ser política de Estado no Brasil, e não instrumento de governo. É assim na saúde, é assim na educação, é assim na cultura, é assim na questão ambiental, e tem que ser assim na comunicação pública. Daí a importância de que mecanismos efetivos de participação social na EBC sejam instituídos, para que a sociedade civil organizada ajude a velar pelos princípios da comunicação pública.

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