Onde estão o jornalista inglês Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira? Se, infelizmente, a pergunta foi respondida da pior forma possível, com a identificação dos restos mortais de Dom no dia 17 e de Bruno no dia 18, a pergunta permanece quando buscamos na Agência Brasil notícias aprofundadas sobre o duplo desaparecimento e assassinato, ocorrido no dia 5 de junho no Vale do Javari, no Amazonas.
Apesar de o site de notícias ter feito uma cobertura razoável dos principais fatos – no fim do dia 20 de junho a busca textual por Dom Phillips no sistema da ABr retornava 54 resultados, incluindo textos em inglês e em espanhol -, alguns aspectos chamam a atenção. O primeiro é a ausência de fotos dos dois, dados inicialmente como desaparecidos.
A busca por imagens de Dom e Bruno na Agência Brasil não retorna nenhuma fotografia. Nas reportagens, a edição optou por utilizar fotografias genéricas de barcos e helicópteros das equipes oficiais de buscas e de paisagens abertas de rios amazônicos. Nem mesmo as clássicas fotografias de desaparecidos, utilizadas amplamente por toda a imprensa, com reproduções de arquivos pessoais ou redes sociais, foram encontradas na agência pública de notícias. Afinal, em casos de desaparecimento, é importante divulgar a foto da pessoa o máximo possível. Por que na Agência Brasil foi diferente?
Outra questão é que algumas matérias não aparecem na busca do site. Por exemplo, justamente as duas que informam sobre a identificação dos corpos pela perícia (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/policia-federal-identifica-restos-mortais-do-jornalista-dom-phillips e https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/peritos-identificam-corpo-de-bruno-pereira-em-exames). Essas duas são, inclusive, das poucas em que aparece o nome de Dom e Bruno no título.
Demora
Para uma agência de notícias, que pressupõe rapidez na publicação das matérias, também houve demora para entrar no assunto. O desaparecimento foi divulgado às 11h21 pelo Twitter por Jonathan Watts, editor de meio ambiente do jornal The Guardian, com o qual Dom colaborava (https://twitter.com/jonathanwatts/status/1533816396387434497?s=20&t=gmawzGMO_gNIQyO5JHD81A).
Às 11h48, o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), também pelo Twitter, divulgou a nota em conjunto com a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) comunicando o desaparecimento e explicando as circunstâncias em que os dois estavam na região (https://twitter.com/OPI_Isolados/status/1533823209551843329?s=20&t=LLxgj-wGfxP51FeTZ2niUw), incluindo as buscas iniciais empreendidas pela própria entidade. A mesma nota foi postada pela Univaja no Facebook às 14h27.
Pouco depois do meio-dia, a notícia já estava nos portais e agências brasileiras e internacionais (https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/06/pf-apura-caso-de-indigenista-e-jornalista-ingles-desaparecidos-na-amazonia.ghtml e https://www.theguardian.com/media/2022/jun/06/dom-phillips-british-journalist-missing-brazil-amazon). Mas a primeira matéria da Agência Brasil sobre o caso só foi publicada às 15h54, com base na nota da Univaja, e alterada posteriormente para inserção de posicionamento da Funai, da Marinha e do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco.
Governismo
Das 54 matérias que aparecem na busca do site, 21 são traduções para inglês ou espanhol. Entre as 33 em português, apenas seis trazem os nomes Dom e Bruno no título, e apenas a partir do dia 17, e somente as duas primeiras mencionam “jornalista e indigenista”, publicadas no dia 6. A maioria dos textos traz títulos genéricos como “Autoridades atualizam investigações sobre desaparecimento no Amazonas” e “PF confirma localização de ‘remanescentes humanos’ em buscas”.
A ênfase no governo ou órgãos e pessoas do Estado aparece em 23 títulos, como “PGR defende continuidade de investigação sobre mortes de Dom e Bruno” e “Senado ouvirá ministro da Justiça e Univaja na quarta-feira”. O ápice do governismo foi a matéria “Governo enviou 300 servidores para ajudar em buscas no Amazonas” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/governo-enviou-300-servidores-para-ajudar-em-buscas-no-amazonas), que traz apenas informações da Secretaria de Comunicação (Secom) sobre as ações do governo federal no caso, incluindo um infográfico com a linha do tempo e efetivo empregado, produzido pela própria Secom.
Diversos textos da ABr contextualizaram a situação, explicando que Dom e Bruno trabalhavam em uma reportagem, que tinham sofrido ameaças e que a Univaja já havia denunciado a operação de organizações criminosas na região e que não concorda com a conclusão da Polícia Federal de que o crime não foi encomendado.
Por outro lado, a cobertura do caso, até o momento, se baseou muito nas ações e entrevistas oficiais. Porém, sem mencionar polêmicas como a demora no início das buscas, denunciada pelas associações indígenas e ativistas da região, ou a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que os dois teriam entrado numa “aventura não recomendável”.
Até mesmo a nota oficial do Comando Militar da Amazônia, do dia 6, de que a corporação estava em “condições de cumprir missão humanitária de busca e salvamento”, mas que só seriam iniciadas “mediante acionamento por parte do Escalão Superior”, foi ignorada pela ABr.
Sensibilidade
Esta Ouvidoria Cidadã da EBC também sentiu falta de reportagens que aprofundem as denúncias feitas pelas entidades ou mesmo que ouça os indígenas do Vale do Javari. As manifestações dos familiares sobre o desaparecimento, com súplicas para que as buscas fossem ampliadas, não foram mencionadas. Faltou o lado humano nos textos da Agência Brasil, em um caso que ganhou o mundo.
Não encontramos textos sobre Dom e Bruno, mesmo que um obituário, que traga para o leitor informações sobre a vida e o trabalho do jornalista, que escrevia sobre a Amazônia há 15 anos e era casado com a brasileira Alessandra Sampaio; e sobre Bruno, que falava quatro línguas indígenas do Vale do Javari e se licenciou da Funai após ser exonerado da Coordenação de Índios Isolados.
Não há menção à canção entoada por Bruno no meio da floresta, em um vídeo forte e comovente, no idioma dos Kanamari, que virou trilha sonora de diversos vídeos e manifestos (https://www.youtube.com/watch?v=uTYiTM441mU). Outra falta na cobertura da ABr é o dossiê “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, lançado no dia 13 pela associação de servidores da Funai Indigenistas Associados (INA) (https://www.inesc.org.br/fundacao-anti-indigena-um-retrato-da-funai-sob-o-governo-bolsonaro/) e Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Se a Agência Brasil utiliza inúmeras vezes declarações de autoridades nas redes sociais, porque não pode fazer o mesmo em um caso de repercussão internacional e que mancha, ainda mais, a imagem do Brasil no exterior? As informações que contradizem a versão oficial estão lá, mas nos parece que, nesse caso, a empresa pública optou por não usar.