Joseti Marques – Jornalista, diretora executiva do Instituto Atrium, ex-ouvidora geral da EBC
“Vem aí o telejornal do Governo; só boas notícias” – esta é uma péssima notícia, que envolve um risco enorme, que poucos conseguem perceber. Então, pensem…
Ninguém sabe, poucos veem – pelo menos é o que se diz sobre o patrimônio público da radiodifusão no Brasil. Como assim, patrimônio público? Mas não é a “TV do Governo”, como até mesmo a mídia tradicional costuma categorizar? Cabe aqui um parênteses: este patrimônio público, originalmente, também inclui oito rádios e uma agência de notícias. Mas a TV, que acusam de não ter audiência, é o que todos os críticos veem, mesmo sem assistir. E quem se interessa pelo que diz uma TV “do Governo”? É só propaganda; não mostra a verdade dos acontecimentos.
Este é um resumo mal traçado da opinião do público que tem recursos para bancar TV por assinatura, onde se incluem alguns jornalistas que assinam colunas. Mas talvez não seja a de milhões de brasileiros e brasileiras que têm apenas a TV aberta como entretenimento. E como sempre atestam pesquisas de consumo de mídia, a TV ainda é o principal veículo de informação e entretenimento dos brasileiros, mesmo com a crescente abrangência da internet.
Pode até ser que poucos saibam qual a diferença entre comunicação pública, privada e estatal. Notem: estatal nada tem a ver com “governamental”, é preciso destacar, porque as pessoas em geral desconhecem, ou não se importam em saber. Mas está lá na Constituição Federal no Art. 223 do Capítulo V:
“Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
Percebem? Não existe previsão para comunicação governamental. Informações de Estado, estas sim são de interesse público – a diferença se torna cada vez mais tênue quando o público abre mão e não defende o que é seu de direito… e a comunicação pública, em seu espectro mais visível, o da radiodifusão, é um direito inalienável de todos os cidadãos e cidadãs deste país. Não poderia, jamais, se utilizada como instrumento de propaganda de governos, sejam eles quais forem.
E quanto pior os governos, mais os veículos públicos são utilizadas pelos governantes para camuflar omissões e enaltecer malfeitos. Imagine o poderio de oito rádios, com alcance espetacular das rádios públicas, a serviço da plataforma de desinformação deste governo que hoje ocupa o Palácio do Planalto?
No entanto, há que se prestar atenção à TV Brasil, que é pública e que sabemos que orbita no universo das TV abertas. Para um público que não tem acesso a quase nenhum de seus direitos, é um alento poder assistir programas “de graça”. Mas a quase totalidade dos programas das TVs abertas insufla a violência, oferece entretenimento de baixa qualidade, informação sem compromisso com a verdade dos acontecimentos, porque em geral fazem propaganda paga, e muito bem paga, com o meu, com o seu dinheiro público. E isso se torna muito mais danoso quando vem travestido de jornalismo.
Olhem só o que declarou um apresentador da Rede TV! quando foi perguntado sobre o cachê de R$ 120 mil que recebeu da Secretaria de Comunicação do Governo para fazer propaganda da cloroquina: “Eu vendo caixão, terreno, carro, sorvete, remédio, qualquer coisa”.
Percebem onde reside o perigo de uma fonte única e atraente de um discurso sem compromissos que não seja o lucro?
Entendem agora a importância de se insistir para que se respeite e defenda a lei que instituiu os veículos de comunicação pública no Brasil? Compreende-se, no entanto, que falar de “comunicação pública” é uma informação relativamente nova e, portanto, embaralhada no turbilhão de notícias de política que, afinal, sempre ocupa muito os interesses dos veículos da comunicação privada. Uma notícia “nova”, que parece padecer de uma eterna juventude, mas que surgiu em 2007, com a Lei que criou a EBC e instituiu a parte pública da complementariedade de que fala a Constituição – uma lei que já nasceu tomando bordoada; afinal, foi criada e sancionada no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que à época sofria enorme resistência da mídia hegemônica que hoje o defende.
Permitam novo parêntese: se fizeram o diabo para retirar Lula da disputa eleitoral que ele venceria em primeiro turno em 2018, imaginem o que não fazem com a TV Brasil, sempre atacada pelo que nela veiculam, como se os conteúdos ela mesma fosse. A TV Brasil é uma TV pública! E deveria ser defendida inclusive pelos jornalistas das emissoras privadas.
Mas voltemos ao ponto.
No contexto geral da radiodifusão no Brasil, temos seis emissora privadas de amplitude nacional, com 545 estações geradoras ou retransmissoras, segundo dados de 2016 da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. Entre elas, temos a TV Globo que, mesmo extemporaneamente, tem-se colocado do lado certo da história, embora com um discurso que mais alcança as classe mais favorecidas – ou menos empobrecidas, neste Brasil que voltou para o mapa da fome e da miséria.
E as outras cinco emissoras? Todas falam uma linguagem bem elaborada para uma audiência que potencialmente renderá votos contratados, que se reverterão em proximidade e benesses de governos, partidos e políticos de baixa qualidade. Neste (des)governo que temos vivenciado, esta proximidade chegou ao extremo – o ministro da Comunicações é genro do dono do SBT!
Um jornalismo ético, plural e comprometido com a formação da cidadania seria o dever e a missão da emissora pública, com um discurso também de acesso a todos os públicos, comprometido com a formação da cidadania, protegendo os mais humildes, fazendo um contraponto pedagógico no cenário de desvario midiático onde prevalecem os vendedores de crenças, promessas de salvação, caixão, sorvetes, carros e cloroquina.
Na disputa entre TVs comerciais, a falta de compromisso ético é a tônica e o dinheiro público é a moeda de troca. Imaginem então, neste panorama nefasto, uma TV pública, sequestrada por um governo inominável, mostrando uma realidade edulcorada, como se somente coisas boas estivessem acontecendo, e garantindo que as inverdades e manipulações é que são notícias confiáveis. Agora imaginem este governo, pagando com o dinheiros público as outras quatro emissoras abertas que topam tudo por dinheiro, para replicar o show de Truman do negacionismo. Difícil, não? Mas é a mais dolorosa verdade.
“Vem aí o telejornal do Governo. Só boas notícias”. Leiam a notícia na Folha de S. Paulo, porque chega a ser difícil reproduzir.
Como dizia meu saudoso pai, “se tivéssemos acordado mais cedo, hoje estaríamos dormindo melhor”. Agora o que nos resta é torcer para que a TV Globo, mesmo que pelo motivo errado, continue fazendo a coisa certa, principalmente quando a corrida eleitoral efetivamente começar. A conferir.