Mais uma edição do programa Sem Censura corrobora a avaliação feita pela Ouvidoria Cidadã da EBC, logo após sua reestreia, de que assumiria uma versão ainda mais governista. Exibido na última segunda-feira (21), o programa desta semana teve como convidado o secretário especial da Cultura, Mario Frias, que assumiu o cargo em junho de 2020, sob protestos da classe artística, devido à falta de perfil e qualificação para a função que desempenharia.

Com a reforma ministerial promovida por Jair Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi reduzido a uma secretaria, vinculada, primeiro, ao Ministério da Cidadania e, posteriormente, a partir de maio de 2020, ao Ministério do Turismo. Por esse fato, já era possível calcular o peso que a cultura teria para o governo Bolsonaro, antevendo-se cortes orçamentários significativos e nomeações inapropriadas para a equipe da pasta.

O currículo insuficiente de Mario Frias fica evidente já no primeiro minuto do Sem Censura, quando são destacados alguns feitos do secretário, que ficou famoso após atuar na série Malhação, da TV Globo, voltada para adolescentes. A TV Brasil, contudo, tenta, com esforço e de forma risível, disfarçar as lacunas de perfil de Frias. Faz, inclusive, menção à sua participação no quadro Dança no Gelo, do Domingão do Faustão. Tais atividades são lembradas como pontos altos da trajetória profissional do mandatário e dignas de nota, para a produção do Sem Censura, que, basicamente, “tira leite de pedra” ao longo de toda a edição.

Em nenhum momento o convidado ressalta ter comparecido a eventos que poderiam atenuar sua carência de atributos para conduzir o órgão ou coisa que o valha. Pelo contrário, ele é estimulado a prosseguir na conversa fiada.

É enorme o espaço disponibilizado para que as jornalistas convidadas, Katiuscia Neri, da própria EBC, e Camila Abdo, do portal Direto aos Fatos, deem continuidade a mesuras que seriam próprias de um programa de entretenimento. A própria apresentadora que comanda a atração, Marina Machado, inicia a entrevista perguntando: O que a secretaria prevê para matar essa fome de cultura?, ao que Mario Frias responde que, em seu primeiro ano de pasta, se deparou com “sérios problemas”, referindo-se a falhas da gestão anterior, do governo Michel Temer, e que pretende estabelecer “novos rumos para a cultura”. “Definitivamente, retirar a cultura dessa posição de palanque político e devolver ao homem comum”, acrescenta ele.

Esse discurso foi bastante repetido pelo ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, quando titular da pasta. Ambos declaram guerra contra artistas de renome, argumentando que artistas sem carreira tão consolidada merecem igual atenção. Ou seja, o que esses membros do governo fizeram e ainda fazem é intensificar disputas entre os próprios artistas, pode-se afirmar, enquanto o debate deveria se concentrar no esvaziamento de políticas públicas para o setor cultural.

Um aspecto que se sobressaiu no programa foi o anúncio da distribuição de R$ 408 milhões em crédito oferecido ao setor de eventos. Embora seja uma ação positiva do governo federal, o destaque que se dá a ela é como se fosse uma grande novidade, uma informação obtida com exclusividade, mediante afinco de algum repórter. Mas não. Trata-se somente de uma informação dada pelo governo, que, afinal, precisa prestar contas à sociedade de como aloca recursos. A EBC faz tal informação reluzir como se fosse algo dado em primeira mão, como um importante furo jornalístico, ao mesmo tempo em que não cumpre seu papel de comunicação pública, ao não permitir que repórteres e apresentadores façam entrevistas verdadeiras, com o devido olhar crítico.

Tudo, na edição, são flores, para quem assiste. Katiuscia Neri, por exemplo, pede que o secretário faça dois balanços: do primeiro ano de gestão e da Lei Aldir Blanc. Ele, espertamente, exibe a lei de fomento como produto da vitrine do governo Bolsonaro, sendo que ela foi aprovada por mérito da mobilização da classe artística. A jornalista dá margem para que Frias afirme que cultura e arte não devem servir de “palanque político-ideológico”. Quando, afinal, artistas foram apolíticos e neutros diante das relações de poder que os circundavam?

Nos últimos quatro minutos de programa, Marina Machado faz um joguete rápido, em que propõe que o secretário responda perguntas irrelevantes para sua posição ocupada no governo. Como por exemplo: “Qual pessoa você gostaria de interpretar?”. Ao que o ator-secretário responde: “gostaria de interpretar o presidente Jair Bolsonaro”.

O secretário Mario Frias é o 12° convidado do Sem Censura, após a reestreia da atração televisiva. A escolha por figuras do primeiro e do segundo escalões do governo federal é nítida, uma vez que, dentre os entrevistados, também estiveram os ministros Fábio Farias (Comunicações), Marcelo Queiroga (Saúde), o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Marcos Pontes (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) e Bento Albuquerque (Minas e Energia). As entrevistas do programa, lamentável dizer, têm sido, na realidade, papos amistosos, conversa entre comadres e compadres. No caso de Frias, outra pergunta descabida e irrelevante para a comunicação pública foi: “Sua mãe tem cerca de 80 anos de idade e seus irmãos já faleceram. Quais as consequências do seu trabalho na sua vida pessoal e na vida da sua mãe?”.

Aí, vem o vitimismo de Frias enquanto integrante do governo Bolsonaro, que, segundo ele, é constante e injustamente atacado, e a demonização da esquerda, que se aprofundou no programa com a ajuda de Camila Abdo. Em diversos momentos, a jornalista afirmo que “a grande mídia bate no senhor, de forma até cruel” e insinuou que é a esquerda quem produz filmes adultos, isto é, pornográficos, o que provocou risadas do secretário, em sinal de endosso. Isso tudo em meio ao que deveria ser um sério debate sobre a situação atual da Cinemateca Brasileira, cujo funcionamento entrou em total colapso durante o governo Bolsonaro, que, sem apresentar uma solução definitiva ainda, coloca sob risco o maior acervo audiovisual da América do Sul. A mesma ingerência ameaça a Fundação Nacional de Artes (Funarte). No DF, noticiou-se no último dia 24, que a unidade voltará a ficar a cargo do governo distrital, sob o guarda-chuva da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec).

O Novo Sem Censura não tem nada de “conversa franca e debate de alto nível”, como disse Marina Machado, ao chamar um dos intervalos comerciais. Só faltou mesmo o chá, porque foi difícil discernir quando era programa de entrevista e quando era propaganda, já que até marketing de certa agência de viagens teve.

Leu a análise da Ouvidoria Cidadã da EBC e ficou curioso sobre o programa Sem Censura, com o secretário especial da Cultura, Mario Frias? Você pode assistir acessando ao seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=2CFC8NR2hkI&t=57s.

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