Uma entrevista exclusiva com o presidente da república! Que emissora de TV não se orgulharia de conseguir um feito jornalístico desse? Pois a TV Brasil exibiu uma entrevista exclusiva da jornalistas Gabriela Mendes com Jair Bolsonaro na noite do dia 19 de julho. Mas, o que poderia ser uma grande oportunidade para fazer perguntas contundentes e esclarecer pontos obscuros na gestão do país, diante de tantas polêmicas denunciadas diariamente pela imprensa, se mostrou um espaço para o típico palanque negacionista do presidente, que aproveitou também para se defender de acusações que nem foram perguntadas, reforçar projetos de destruição ambiental e disputa de narrativa. Nenhuma surpresa diante da atual linha editorial que tomou conta da Empresa Brasil de Comunicação.

Em 36 minutos de entrevista, o presidente menosprezou o efeito de salvar vidas que a vacinação contra a Covid-19 está alcançando, continuou defendendo o que ele chama de tratamento precoce contra a doença, com cloroquina e azitromicina, que a essa altura da pandemia já se comprovaram como ineficazes, e insistiu na tese de que indígenas e caboclos são os responsáveis pelos incêndios florestais que assolam o país desde 2019. Nem nas mentiras do presidente a exclusiva apresentou novidades.

O anúncio da entrevista é como uma exclusiva para a Rádio Nacional da Amazônia. A entrevistadora começa com uma imprecisão sobre a própria emissora, afirmando que o presidente falaria “para todas as emissoras da Rádio Nacional da Amazônia”, quando a emissora é apenas uma. O material foi aproveitado para um texto da Agência Brasil e também na Radioagência Nacional.

Ao longo da entrevista, a apresentadora parecia fazer perguntas combinadas para que Bolsonaro se explicasse. Levantando a bola para ele cortar, como em questões sobre as viagens que ele faz pelo Brasil “para entrar em contato com o povo”, a economia que estaria “se recuperando” ou o projeto de levar internet para as escolas e o interior, ao que ele responde que “a internet é algo que nos liberta. Só me elegi presidente da República graças à internet. Se dependesse da grande parte da mídia que existe por aí eu não teria chegado, porque as mentiras, as narrativas são fabricadas a todo momento. Você sabia que eu sou taxado de corrupto sem ter gasto um centavo com a Covaxin?”. Na verdade, a acusação, nesse caso, é de prevaricação, como explica reportagem da BBC Brasil.

O presidente também criminaliza os movimentos sociais, como o MST, diz que a corrupção no país começou nos Correios e que os indígenas querem explorar suas terras com pequenas hidrelétricas e garimpo, além do velho mito de que “é muita terra para pouco índio”. Fala em “indústria de multa ambiental” e em “indústria de demarcação de terra indígena”, que seriam impulsionadas por organizações estrangeiras.

De novidade mesmo, só a afirmação de que o presidente vetaria o fundo eleitoral de R$5,7 bilhões aprovado pelo Congresso Nacional. “O valor e astronômico, mais 6 bilhões de reais para campanha eleitoral. Eu nunca gastei dinheiro com campanha política”, afirmou Bolsonaro.

Também chama a atenção uma colocação do presidente no meio da entrevista, enquanto desqualifica o trabalho do jornalismo profissional: “eu podia estar todo dia aqui, mas é a primeira vez que estou falando com você”. “Aqui”, no caso, são os veículos da EBC. E apesar das inúmeras interrupções que os eventos da agenda presidencial têm feito na programação da TV pública, não, presidente, você não podia estar “aqui” todo dia. A EBC não é do governo. A EBC é do povo brasileiro!

Fact-cheking

Diante de tantas afirmações “imprecisas”, para dizer o mínimo, ao longo da exclusiva, resolvemos fazer uma checagem das declarações do presidente, que em nenhum momento foram questionadas pela entrevistadora ou minimamente contextualizadas. Confira a nossa checagem de algumas afirmações do presidente.

Declaração: “Na pandemia, tem muitos governadores que fecharam tudo, destruíram empregos, em especial na informalidade. Nós somos mais ou menos 38 milhões de pessoas que viviam do dia a dia, muitos trabalhavam de manhã pra comer de noite. Perderam tudo. Se não é o auxílio emergencial por parte do governo essas estariam condenadas, aí, até a morrer de fome”.

Checagem: 19 milhões de pessoas passaram fome no Brasil em 2020, contra 10,3 milhões em 2018, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Além disso, 59% dos domicílios enfrentaram algum grau de insegurança alimentar. Segundo reportagem da BBC Brasil, além da pandemia, contribuem para o aumento da fome a defasagem nos programas de transferência de renda e o enfraquecimento dos programas de combate à fome e de promoção da agricultura familiar. Os especialistas ouvidos também aponta que auxílio emergencial e a distribuição de cestas básicas, adotadas pelo governo, são soluções paliativas para a fome. Sobre a informalidade no mercado de trabalho, o IBGE aponta que a informalidade no trimestre móvel encerrado em abril ficou em 39,8%, com 34,2 milhões de trabalhadores informais, o que representa uma recuperação depois do menor nível, registrado em 37,4% em julho do ano passado. O recorde da informalidade ocorreu em outubro de 2019, com 41,3% ou 38,8 milhões de pessoas.

Declaração: “2020 foi o ano da pandemia. Nós terminamos dezembro com mais empregos formais do que dezembro de 2019, isso é um sinal de que a economia trabalhou nesse sentido, para evitar que milhões de empregos fossem destruídos”.

Checagem: Dados da Pnad Contínua do IBGE mostram que no último trimestre de 2019 a taxa de desocupação estava em 11% e subiu para 13,9% no mesmo período de 2020. O trabalho com carteira assinada no setor privado caiu de 33,67 milhões de pessoas para 29,88 milhões e o número de empregadores reduziu de 4,45 milhões para 3,92 milhões.

Declaração: “A política do fique em casa e a economia a gente vê depois, que eu sempre fui contra dessa forma como foi apresentada, mas não tinha poderes sobre estados e municípios, levou à inflação. Por incrível que pareça, o mundo passou a consumir mais. O Brasil consumiu mais apesar da pandemia, isso por causa dos programas do governo. Houve até aumento de peso nas pessoas”.

Checagem: O PIB de 2020 fechou com queda de 4,1% e o consumo das famílias teve o menor resultado da série histórica, com -5,5%, segundo o IBGE. Sobre aumento de peso, há dois levantamentos divulgados no período pandêmico: a Pesquisa Nacional de Saúde 2019, divulgada pelo IBGE em novembro de 2020, que aponta aumento da obesidade entre homens de 17,9% em 2013 para 22,8% em 2019 e de 25,7% para 30,2% entre as mulheres; e a pesquisa Diet & Health Under Covid-19, feita em 30 países, apontou as pessoas do Brasil em primeiro lugar entre as que mais acreditam ter engordado na pandemia, entre fatores como aumento do sedentarismo e do hábito de beber, com 52% dos entrevistados respondendo que ganharam peso.

Declaração: “Minha política de combate ao vírus seria muito parecida ao do prefeito Lara, de Bagé, que praticamente não fechou o município e foi um dos que menos sofreu no tocante ao número de mortes por milhão de habitantes”.

Checagem: Os dados do dia 20 de julho da Covid-19 mostram que o Brasil tinha 259 mortes por 100 mil habitantes, com um total de 544.180 óbitos. O Rio Grande do sul estava acima da média nacional, com uma taxa de 288. Dentro do estado, o município de Bagé aparece na cor mais escura da incidência de casos. Em mortalidade, está um pouco abaixo da média nacional, com taxa de 235,3 óbitos por 100 mil habitantes, segundo os dados da Secretaria de Saúde do Estado do RS, com um total de 285 óbitos registrados para uma população estimada pelo IBGE em 121.335 pessoas em 2020. Taxa acima da média da região Nordeste, por exemplo (193,5).

Declaração: “O protocolo Mandeta, o que ele recomendava? Você com covid vá pra casa e quando estiver sentindo falta de ar vá pro hospital. Pra ser entubado? O tubo é um remédio? Não tem até hoje remédio com comprovação científica, assim como o chá da minha vovó não tem comprovação científica. Conversei com índios Tukanos e Yanomamis que falaram que muitos índios haviam se contagiado com covid e não morreram porque tinham tomado chá de casca de árvore”.

Checagem: Segundo os dados do monitoramento da Covid-19 feito pelo Instituto Socioambiental (ISA), a pandemia matou até o dia 20 de julho de 2021 um total de 57.086 indígenas brasileiros. A Terra Indígena Yanomami é a segunda mais afetada, com 6.981 vítimas fatais. Já a Terra Indígena Alto Rio Negro, onde vive o povo Tukano, registrou 5.124 óbitos por Covid-19.

Declaração: “Eu tomei hidroxicloroquina e no dia seguinte estava bom. Mas porque foi demonizada? Porque o lobby da indústria farmacêutica falou muito alto. Focar apenas na vacina? Não. A vacina sim, não apenas a vacina. Até porque a vacina tem dado mostras, em algum lugar no mundo, tipo de vacina, que ela não te protege. Então você tem que ter o tratamento precoce, procurar um médico. E salvar vidas”.

Checagem: A vacina salva vidas. Como apontam pesquisadores como o coordenador do sistema InfoGripe da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Marcelo Gomes, e o epidemiologista da UFPel Cesar Victora. Sobre a hidroxicloroquina, diversos estudos já apontaram que o tratamento não funciona contra a Covid-19, como destacou a microbiologista da USP Natalia Pasternak, na CPI da Pandemia.

Declaração: “Tirando os países que fabricam vacina, que são 4 ou 5, o Brasil é o país que mais vacinou no mundo. Já distribuímos mais de 150 milhões de doses, já vacinamos com a primeira dose mais de 100 milhões”.

Checagem: Segundo o painel do G1, o Brasil aplicou a primeira dose em 91 milhões de pessoas e 34,9 milhões já receberam a imunização completa, com dados de 21 de julho. Reportagem da CNN mostra que o Brasil está em 67º lugar no ranking global de aplicação de doses por 100 habitantes, em 11º na aplicação proporcional entre os países do G20 e, apenas em números absolutos, fica em quarto lugar.

Declaração: “Na Amazônia acontece ilícitos também, por exemplo, quando se fala em queimadas, uma parte considerável é o caboclo ou indígenas que tocam fogo na sua roça e nós somos massacrados pela mídia internacional, e nacional também, de forma covarde. Tentamos aprovar um projeto de regularização fundiária mas foi barrado na Câmara. Fazendo a regularização você tem as condições de saber o CPF de quem desmata”.

Checagem: Desde 2019, o número de incêndios florestais vem aumentando e a suspeita é que as ações sejam uma tática para a expansão das fronteiras agrícolas. Ou seja, são queimadas criminosas praticadas por fazendeiros do agronegócio. Depois do “Dia do Fogo”, em 10 de agosto de 2019, as ações não diminuíram em 2020 e foi identificado que metade dos incêndios começaram em propriedades rurais cadastradas.

Declaração: “O estado de Roraima é uma área fantástica em riquezas minerais. Roraima praticamente perdeu a sua viabilidade econômica pela extensão territorial com demarcação de terras indígenas, não é justo você reservar uma área duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro para 10 mil índios, não é razoável. Nosso projeto é deixar o índio fazer na terra dele o que o fazendeiro faz. Vai poder garimpar, vai poder fazer rodovia e cobrar pedágio. Construir PCH, plantar na sua terra. Uma parte considerável dos índios me têm como uma pessoa de bem, estão vibrantes com a possibilidade de aprovar esse projeto, pra dar dignidade a eles. O índio é igualzinho você e eu. Não tem diferença entre nós, mas eles querem liberdade e dignidade. Não fazer como os outros governos fizeram, manter num espaço limitado como um ser num jardim zoológico. Ele já está tão evoluído que é igualzinho cada um de nós”.

Checagem: Os episódios mais recentes divulgados pela imprensa sobre a violência no estado de Roraima dizem respeito justamente à falta de garantia de segurança aos indígenas em seu próprio território, na comunidade Palimiú, dentro da Terra Indígena Yanomami, já demarcada. A violência se dá pela exploração ilegal do garimpo dentro das terras indígenas, que sofrem sem fiscalização, como já foi solicitado tanto pelas comunidades como pelo Ministério Público Federal. O MPF ajuizou ação no ano passado pedindo a total desintrusão de garimpeiros na TI Yanomami. Já há decisões na Justiça em favor do MPF desde o ano passado, mas os episódios de invasão e violência recentes demonstram ações pouco efetivas

Entidades indígenas solicitam a preservação da floresta, atualmente devastada pelo garimpo, porque reconhecem os prejuízos da atividade dentro das terras indígenas, e não que o garimpo possa ser estendido na região.

De acordo com a Funai, “a demarcação de terras indígenas contribui para a política de ordenamento fundiário do Governo Federal e dos Entes Federados, seja em razão da redução de conflitos pela terra, seja em razão de que os Estados e Municípios passam a ter melhores condições de cumprir com suas atribuições constitucionais de atendimento digno a seus cidadãos, com atenção para às especificidades dos povos indígenas”. A demarcação das terras indígenas garante a diversidade étnica e cultural, além da conservação ambiental. Ainda conforma apresenta a Funai, “a proteção ao patrimônio histórico e cultural brasileiro é dever da União e das Unidades Federadas (…) As terras indígenas são áreas fundamentais para a reprodução física e cultural dos povos indígenas, com a manutenção de seus modos de vida tradicionais, saberes e expressões culturais únicos, enriquecendo o patrimônio cultural brasileiro”. Entidades de defesa dos direitos indígenas e da preservação do meio ambiente apontam que ocorre maior preservação da floresta em terras indígenas. Ainda assim, invasores promovem o desmatamento nos territórios indígenas.

O ISA destaca que a Constituição assegurou aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, reconhecendo o direito à diferença. “Isto é: de serem índios e de permanecerem como tal indefinidamente”. A Constituição garante também “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Declaração: “Estamos distribuindo títulos da reforma agrária. No nosso governo distribuímos mais títulos que nos últimos 20 anos. Você está dando uma carta de alforria ao pessoal que era escravizado pelo MST. Estou fazendo uma campanha de armamento, você não vê mais o MST invadindo propriedades aí, tacando fogo, matando a criação tua. Conseguimos em parte conter isso, tiramos dinheiro de ONGs que contribuíam com o MST”.

Checagem: De fato, o Incra afirma que de 2019 até maio de 2021 expediu 158.172 títulos provisórios e definitivos para agricultores familiares em assentamentos da reforma agrária. Também segundo o Incra, atualmente 969.197 famílias vivem em assentamentos criados ou reconhecidos . De acordo com reportagem da Agência Brasil, em 2017 o governo federal emitiu 26 mil títulos definitivos de domínio de imóveis para assentados da reforma agrária, volume dez vezes superior ao da média histórica desde 2003 e maior do que a soma de todos os títulos emitidos entre 2008 e 2017. Não encontramos os dados relativos a 2018. Destacamos que os dados do governo Bolsonaro incluem títulos definitivos e provisórios, enquanto os anteriores falam somente em definitivos. Por outro lado, nos governos Lula e Dilma (2003-2016), foram publicados 2.225 decretos de desapropriação de terra para fins de reforma agrária. Na gestão Temer (2017-2018), esse número caiu para 5 decretos e chegou a zero com Bolsonaro. Em uma dessas entregas de títulos promovida por Bolsonaro, em maio deste ano, agricultores familiares foram impedidos com bombas de gás lacrimogêneo de participar da cerimônia que supostamente seria em benefício deles. Segundo o MST, essa entrega de títulos é feita sem planejamento e sem garantir a estrutura mínima para a produção do agricultor familiar.

Sobre o armamento da população, o Anuário de Segurança Pública deste ano mostrou que o país dobrou o número de armas nas mãos de civis em apenas três anos. Além de mais pessoas com cadastro para ter armas, também houve aumento no arsenal. Especialistas apontam que mais armas em circulação gera aumento na violência. A mesma edição do anuário revela que houve um aumento de 5% nas mortes violentas intencionais (os homicídios, os latrocínios, as lesões corporais seguidas de morte e as mortes em decorrência de intervenção policial); recorde de letalidade policial, com foram 6,4 mil mortes provocadas por agentes do estado; aumento dos assassinatos e agressões contra população LGBTQIA+; e alta nas mortes de crianças e adolescentes, com mais de 6 mil vítimas em 2020.

Quanto à violência no campo, o Relatório Conflitos no Campo Brasil – 2020, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), registrou o maior número desde 1985, quando a entidade começou a fazer o levantamento, passando de 2 mil. O número de ocorrências de conflitos por terra, de invasões de territórios e de assassinatos em conflitos pela água também bateram recorde. O documento estimou quase um milhão de envolvidos nos conflitos. Para a CPT, o enredo do relatório segue um roteiro historicamente dado: injustiça fundiária, prevalência dos interesses do capital, violência, omissão e conivência do estado e resistência dos povos e comunidades. Os maiores números de ocorrências de conflitos por terra foram registrados em 2020, em seguida 2019, ambos sob governo de Jair Bolsonaro. Em terceiro lugar, está o ano de 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff e início de governo de Michel Temer.

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