Criado em 1985 em meio à reabertura política do país, após 21 anos de ditadura militar, o programa televisivo Sem Censura disse ao que veio já no nome. A ideia era promover debates políticos com liberdade na TVE do Rio de Janeiro, canal antecessor da TV Brasil, após a censura sistêmica aos meios de comunicação promovida nos anos de chumbo.
Apesar de não ter mais o enfoque em debates políticos nos anos 2000, o Sem Censura estava consolidado como um programa de entrevistas de variedades e espaço para divulgação de artistas. Com nome gravado na história da televisão brasileira, o programa foi um dos produzidos pela TVE mantidos na grade da TV Brasil, criada em 2007 com a fusão com a TV Nacional de Brasília.
As mudanças de formato ocorreram ao longo dos anos. O programa tinha duas horas de duração e ocupava a grade das tardes da TV Brasil de segunda a sexta-feira. O horário mudou algumas vezes e o tempo foi sendo reduzido, primeiro para 1h30, posteriormente para 1 hora de duração.
Até que em março de 2020 o Sem Censura foi “repaginado” para se tornar mais “dinâmico”: passou a ter 30 minutos de duração, metade do tempo anterior. No projeto original do novo programa era previsto apenas um entrevistado no estúdio, falando sobre um tema diverso, e entradas ao vivo de repórteres do jornalismo da TV Brasil com notícias factuais do dia.
Com o advento da pandemia da Covid-19, esse formato foi ao ar em uma única edição, passando no dia seguinte à estreia desse formato a não ter nenhum convidado em estúdio, por medidas de segurança sanitária. As entrevistas passaram a ser online, com duração de cerca de 4 minutos, muito diferente da ideia de bate-papo descontraído e aprofundado original do programa. Ao invés de um, passaram a entrar 2 convidados por programa, um em cada bloco. As entradas dos repórteres com notícias factuais foram mantidas, com estes expostos em grandes telas no estúdio. O modelo parecia simular o programa Estúdio I, da emissora paga Globo News.
Porém, em novembro de 2020 o Sem Censura saiu do ar e voltou à grade com nova reformulação no último dia 5 de abril, com uma hora de duração e apenas às segundas-feiras, às 21h30, sendo transmitido ao vivo dos estúdios da TV Brasil de Brasília. Foi a primeira vez, em 35 anos, que o programa passou a ser transmitido da capital federal, ao invés do Rio de Janeiro.
O estranhamento com o novo programa de nome antigo começa pela nova logomarca, que traz a palavra Censura escrita em tipo tachado, o que, em geral, indica justamente uma censura. Na estreia, a apresentadora Marina Machado informa que “o programa foi reformulado para promover o debate franco e confiável num momento de polarizações” e que pretende ser um “lugar de troca de ideias sem meias palavras”.
Ministro das Comunicações
O entrevistado para a reestreia foi o ministro das Comunicações, Fábio Faria. Os jornalistas Fábio Murakawa, repórter do Valor Econômico, e Marianna Holanda, do Estadão, foram convidados como debatedores. Isso mesmo. Debatedores. O novo Sem Censura se propõe a ser um programa de debate, onde apenas uma pessoa expõe as ideias, já que jornalistas devem primar pela isenção. Detalhe: ninguém de máscara no vídeo, em pleno pico da pandemia de Covid-19.
O modelo debate eleitoral começa com a organização do estúdio, com púlpitos, todos desconfortavelmente em pé, o entrevistado de um lado, os debatedores do outro e a apresentadora no meio. Em alguns blocos, os tempos para pergunta e resposta são cronometrados, com direito a réplica. Igual a um debate eleitoral, porém não há debate de propostas para o eleitor decidir quem merece o seu voto.
Pelo contrário, as intervenções e perguntas da apresentadora ao ministro parecem levantar a bola para ele cortar. Marina Machado perguntou a Fábio Faria como o governo trabalha a comunicação na pandemia e apresenta o “vacinômetro”, um painel colocado próximo ao Ministério da Saúde que contabiliza o número de doses de imunizantes contra a Covid-19 aplicadas no país.
Depois fala que Faria é um político jovem e já está como ministro, pergunta o que foi feito para modernizar a comunicação do governo, como tornar mais clara e mais objetiva a comunicação de governo e parece defender o ministro ao explicar que a infraestrutura para a implantação da internet banda larga é muito complexa.
O quadro De bate e pronto, com perguntas rápidas e respostas objetivas, poderia ser bom. Não fossem as perguntas água com açúcar, parecendo um pingue-pongue com celebridade. “Qual foi o melhor momento à frente do ministério”, “qual foi o seu pior momento no ministério”, “qual será o legado da sua gestão”, “o que significa melhorar a comunicação de governo” foram algumas das questões feitas ao ministro.
Os debatedores convidados até fizeram perguntas um pouco mais contundentes, questionando Faria sobre a reforma ministerial, a articulação política do governo, a aliança com o Centrão, a participação de militares no governo, a volta do ex-presidente Lula ao cenário político e os ataques do presidente Jair Bolsonaro aos governadores durante a pandemia. Porém, ninguém rebateu as falas “controversas” do ministro, para dizer o mínimo.
Faria afirmou, por exemplo, que o Brasil está “vacinando muito rápido”, que o povo “quer voltar logo a trabalhar”, que o governo está combatendo o desmatamento ilegal e as queimadas na Amazônia, que a visão ruim do país no exterior não passa de uma “disputa de narrativas” que o governo está perdendo porque “não tem dinheiro para comprar espaço publicitário em euro”, que Bolsonaro é “totalmente favorito nas eleições 2022”, que o Brasil teve uma “reação econômica muito grande em 2020” e que Bolsonaro foi “o presidente que mais falou com a imprensa”. O ministro considera “falar com a imprensa” as declarações para apoiadores dadas no cercadinho na porta do Palácio da Alvorada.
Nenhuma pergunta foi feita ao ministro das Comunicações sobre o destino da EBC ou dos Correios, empresas estatais fundamentais para o Brasil, vinculadas à pasta e que foram incluídas neste mês no Programa Nacional de Desestatização (PND).
Ministro da Saúde
No segundo programa do novo Sem Censura, no dia 12, mais um ministro. Desta vez, o da Saúde, Marcelo Queiroga. Ele usava máscara, ao contrário do colega do programa anterior, assim como as debatedoras convidadas, as jornalistas Carla Araújo, do site Uol, e Lilian Tahan, do Portal de Notícias Metrópoles, colocadas lado a lado no púlpito. Os participantes também tiveram à disposição uma cadeira alta.
Chama a atenção, que diferente do primeiro programa, em que os debatedores convidados eram representantes de dois dos maiores jornais impressos do país, nesta edição a participação foi de representantes de portais online, um deles de destaque apenas regional do centro-oeste, pouco conhecido nacionalmente.
Mais uma vez, a apresentadora fez propaganda do vacinômetro e o tema da vacinação contra Covid-19 dominou o primeiro bloco. A campanha de vacinação contra a gripe também foi lembrada, com o ministro destacando que essa imunização ajuda a tirar a pressão do SUS, liberando leitos para os cuidados com pacientes Covid.
O segundo programa foi melhor do que o anterior, até pela premência do tema. O ministro da Saúde se disse empenhado em avançar com a vacinação e a favor das medidas restritivas para conter a pandemia. As debatedoras fizeram perguntas mais contundentes, sobre a CPI da Covid, as denúncias de testes retidos pelo ministério e o negacionismo do presidente.
No quadro De bate e pronto, as perguntas foram mais interessantes do que as feitas ao ministro das Comunicações, como “qual o maior desafio hoje”, “qual o maior erro do Brasil no enfrentamento da pandemia” e “qual a importância de investir em ciência”.
O quadro Debatendo, mais uma vez, se mostrou inadequado. Cada debatedor convidado expõe seus pensamentos em 2 minutos, depois o entrevistado responde em 3 minutos e as debatedoras têm direito à réplica. Com contagem regressiva do tempo na tela. O modelo não funciona, acaba virando uma entrevista, já que os jornalistas não estão ali para expor suas opiniões. O espaço parece ser para o ministro se explicar, sendo cortado pela apresentadora pelo fim do tempo determinado. A réplica se restringe a uma nova pergunta ou reforço da anterior.
Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República
Para o dia 19 de abril, Dia do Exército, além de Dia do Índio, o convidado foi o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Augusto Heleno. Participaram do programa os jornalistas Rodolfo Costa, da Gazeta do Povo, e Juliana Braga, do portal MyNews. No estúdio, estavam todos sem máscara, apesar da pandemia ser o principal tema discutido.
A falta de uso de máscaras, como no primeiro programa, deixou evidente que a produção do programa não possui um protocolo claro de prevenção à Covid-19, deixando a decisão pelas medidas de segurança serem determinadas pelo convidado do dia, no lugar de seguir regras da casa. Mais uma vez, chama a atenção que os debatedores convidados são representantes de veículos desconhecidos nacionalmente. Mesmo a EBC contando com jornalistas premiados em veículos de grande visibilidade e credibilidade nacional, como a Agência Brasil e a Rádio Nacional, estes não foram convidados a participar do novo Sem Censura.
Os problemas no formato permanecem. O novo Sem Censura não promove o debate, mas sim uma entrevista, em que o ministro da vez segue defendendo o governo, sem mostrar nenhum projeto de avanço para o país sair da crise sanitária e econômica.
Pinçamos algumas declarações do general Heleno durante o programa: “a vacina é um assunto polêmico e tem sido tratado com muito partidarismo”; “De 50 anos pra cá não passa pela cabeça das Forças Armadas a participação política dessa forma [intervenção militar]. Defendemos o que está no livrinho [Constituição]”; “o médico tem liberdade para tratar o seu cliente da maneira que achar melhor”; “O presidente vai tomar a vacina quando o último brasileiro for vacinado”; “a vacina tem sido tratada de maneira injusta e inadequada pela imprensa, o Brasil é o quinto país que mais vacina”; “nós tínhamos uma política indigenista caótica, melhorou muito agora”; “primamos pelo desenvolvimento sustentável na Amazônia, não são animais que moram lá, são 23 milhões de cidadãos brasileiros, são seres humanos ávidos para ter acesso a tudo, precisamos levar aos indígenas o que eles merecem possuir dentro da modernidade”; “o Brasil tem muito resolvedor de problemas no barzinho. As coisas no governo não funcionam assim”.
As participações de internautas neste programa se resumiram a elogios ao general e perguntas relacionadas à exaltação das forças armadas como “qual seu conselho para quem quer seguir carreira militar?”
Apesar da participação de jornalistas de outros veículos, que ajudam a arejar as perguntas aos entrevistados, o novo Sem Censura não nos pareceu um lugar para o “debate franco” nem para a “troca de ideias sem meias palavras”, como foi apresentado. Três programas, três ministros entrevistados, nenhum questionamento profundo feito, nenhum debate de ideias apresentado. Apenas ministros defendendo veementemente as posições do governo e do presidente Bolsonaro, inclusive com declarações controversas.
Para isso, a TV Brasil já produz o programa Brasil em Pauta, que vai ao ar aos domingos às 19h30, onde ministros e secretários especiais “comentam as principais políticas públicas que mexem com a vida da população brasileira” (https://tvbrasil.ebc.com.br/brasilempauta).
O histórico Sem Censura merecia um enterro mais digno, e não ter o nome vilipendiado com a transformação do programa em um arremedo de debates com cunho governista.