Por Joseti Marques*

 

O Brasil dos últimos quatro anos pode ser considerado um grande laboratório em que pesquisadores de diversos campos de conhecimento podem se debruçar para entender, na prática, como a realidade social se constrói, para o bem e/ou para o mal. Todos poderão ver, a partir de suas próprias lentes, que na raiz do conjunto nefasto que tecia a cada dia a perspectiva de um golpe, estava mais do que a maldade dos que comandam, e a estupidez dos que se deixam comandar.

Para além das motivações humanas de cada uma das partes envolvidas esteve sempre, como sempre estará, os elementos que compõem o campo amplo da Comunicação – amplo porque está na base de absolutamente tudo o que nos permite existir. A comunicação está em tudo de forma tão naturalizada como o ar que respiramos; talvez por isso não receba a atenção devida por parte daqueles que poderiam e deveriam vê-la como estratégica.

Essa é uma explicação amena para o fato de o novo governo, comandando por um presidente que vem sendo atacado de forma tão virulenta pela mídia ao longo dos anos, ter entregado a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que abriga os veículos públicos de comunicação, a um conjunto de partidos que historicamente se situam à direita e centro-direita do espectro político, abrigados sob a sigla União Brasil.

No ecossistema comunicacional que temos, veículos públicos de comunicação podem (e deveriam ser) um contraponto para, como diz a lei que os instituiu, contribuir para a formação crítica de cidadãos e cidadãs – nada mais explicitamente estratégico.

Assim como a vida se forma a partir da comunicação entre dois elementos, a vida se apaga quando o cérebro cessa a sua interação com os demais órgãos, mesmo que o coração ainda continue no esforço de manter a comunicação que não é mais possível. E a metáfora deve parar por aí, porque o processo de comunicação não é metafórico, mas concreto, real e eficaz na produção de seus efeitos, sejam lá quais forem.

A duras penas, o Brasil escapou de um destino tenebroso nas mãos de um genocida com seus asseclas e uma horda de seguidores, mas estará fadado ao mesmo abismo se não se der conta de que a Comunicação foi a argamassa que deu corpo às fundações do edifício de terror que mostrou suas garras na depredação dos prédios públicos, sedes dos três poderes, em 8 de janeiro de 2023.

Neste momento em que estamos todos impactados por descobrir o quão perto do abismo estivemos, toda a mídia jornalística comprometida com a verdade dos fatos alinha-se ao lado dos Poderes atacados, reduzindo substancialmente o olhar crítico que é a base de seu ofício. Mas os tempos de normalidade irão chegar e cada um voltará a ocupar o seu lugar no contexto da realidade reconhecível, sempre baseada na disputa de narrativas que guarda muito mais intencionalidades do que o texto deixa ver. A Comunicação voltará ao seu lugar intramuros, nas universidades, nas pesquisas e livros que dissecam o cadáver do ocorrido para diagnosticar o mal que o matou. E a isso também não se tem dado a devida importância.

Se olharmos detidamente para as trincheiras onde se deu esta batalha que ainda está quente, veremos que a comunicação foi a munição mais eficaz e que, afinal, era mesmo uma guerra de comunicação. Para as constatações fáticas das ações daí resultantes, a letra concreta e fria da Lei.

A subestimação do papel da comunicação quase nos levou de volta às iniquidades de um passado ainda recente – o golpe civil-militar redivivo, com seus generais caquéticos, empoderados por um presidente golpista e celerado.

Na mídia tradicional – algumas TVs em lugar de destaque –  o golpe se imiscuía na vida das pessoas, descaradamente, zombando do preceito democrático da liberdade de expressão e da falta de regulação da mídia – outra das disputas de poder que o Brasil precisa enfrentar. No território das mídias digitais, a força do poder econômico, insuflada com o dinheiro público pelos golpistas instalados no poder, completava a tática importada que azeitava e incitava o ódio. Lá, como aqui, vencemos. Mas lá, como vemos, o grande mal ainda se move mesmo que andrajoso. E aqui, como será?

Neste contexto, a TV Pública do Brasil foi tragada pela sanha de destruição que varreu as instituições como forma de estabelecer a vontade doentia do mandatário. Esteve ameaçada de privatização, mas se deram conta de que a força da comunicação, mesmo com baixa audiência, lhes seria útil como agência de propaganda, nos moldes inaugurados pelo nazismo: glorificação de todo e qualquer ato do chefe da nação, até mesmo as formaturas de alunos de colégios militares, como tantas vezes vimos na TV Brasil.

Afora alguns aguerridos defensores da comunicação como um direito humano e da comunicação pública como forma de exercê-lo, o público em geral não se deu conta do valor que lhe estava sendo surrupiado – uma falha de comunicação, talvez.

Passado o pior da tempestade – porque a chuva fina ainda cai – a Comunicação volta ao seu lugar de incompreensão, deixada em um canto como a arma com que se lutou e venceu uma batalha, até que outra luta se imponha. A Comunicação, ao mesmo tempo, é a arma e o campo de batalha; não entender isso é adiar sine die o fim da guerra.

Sem respeito e valorização da Comunicação Pública, encarnada nos veículos da EBC, e sem um projeto sério de regulação da mídia entre outras medidas, estaremos sempre à beira de um abismo.

E de tanto olharmos para o abismo sem cuidar do campo minado da comunicação, o abismo começou a olhar para nós e quase nos engolfou.

 

*Presidenta da Organización Interamericana de Defensoras y Defensores Públicos de las Audiencias, ex-ouvidora-geral da EBC

 

 

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