Tendo apenas aspirações individuais, o brasileirinho jamais entenderá uma luta coletiva… Gigante é o poder da Comunicação Pública! Inicialmente desprezada pela trágica gestão bolsonarista, a TV Brasil foi sequestrada, usurpada e despedaçada por um “coletivo” de sujeitos mal-intencionados, individualistas, egoístas, narcisistas, oportunistas e acumuladores de privilégios.

O fetiche do verde e amarelo descoloriu qualquer tecnologia herdada daquela época da TV analógica em que o Palhaço Bozo era exibido ainda em preto e branco. Você lembra? De sucateada, virou a rainha do antiquado, do inadequado, do equivocado, do indelicado. Racista! A audiência subiu naturalmente ou é prótese? Dói demais não ter Conselho Curador!

A programação tornou-se mamadeira para ninar os filhos da casa grande. A casa comprou reprise de novela bíblica, produziu militarescos, foi na garupa de motoqueiro, viajou o Brasil inteiro e cada herdeiro quis um pedaço de TV para chamar de “TV Minha”. Sendo assim foi repartida: “Meu programa de Agro”, “Meu programa de MEU jornalismo”, “Meu programa de Turismo na Pandemia”, “Meu programa de MEU Brasil”, até que cada herdeiro recebesse seu pedaço da grade. Que grade? Não sobrou nada para o público do Público.

O show de horrores foi televisionado, foi racista, fascista, misógino, machista, transfóbico, capacitista, lgbtfóbico, antidemocrático… Quem despedaçou o Brasil da TV Brasil? Basta voltar um pouco o vídeo. Basta! Aliás, teu pedaço do Brasil foi tirado de quem? O dono do pedaço foi longe demais. Tomou um avião, tomou um café colonial, tomou vários aeroportos, mas não saiu da própria bolha. Sem máscara, foi longe demais para televisionar uma senzala preservada, bastaria olhar a pandemia e o genocídio embaixo do nariz.

Confira a análise da série “Belle Époque – Fazendas históricas”, feita por Algrin David especialmente para a Ouvidoria Cidadã da EBC

Em certos momentos recentes da nossa história, a invisibilidade da cultura negra e a naturalização da narrativa colonizadora e romântica do domínio das classes dirigentes brancas eram marcas do que pensávamos enquanto sociedade acerca do período escravagista brasileiro. Uma série de lutas, estudos aprofundados e releituras nos campos da historiografia e dos estudos culturais pareciam ter sido suficientes para demarcarem uma virada de página atenta e crítica a esse dolo histórico na construção da nossa identidade como povo. Na série “Belle Époque – Fazendas Históricas” as circunstâncias nos mostram mais uma vez que o conservadorismo, o racismo e o colonialismo ainda seguem vivíssimos nas entranhas de certas regiões e no seio do funcionamento das elites brasileiras.

A absoluta ausência de uma legítima reflexão crítica acerca das violências raciais da época, seja do Brasil Colonial ou Brasil Império, atreladas à valorização aguda do período como auge da economia latifundiária brasileira são alguns dos signos possíveis que a produção audiovisual sustenta sem nenhum pudor. Fazendas Históricas, sob o pretexto de realizar um tour cultural no coração da Casa Grande na perspectiva de museus abertos da história do Brasil, serve de ponta de lança para a promoção comprometida e rigorosa de uma narrativa aristocrática, pró-latifúndio e, em dados momentos, quase explicitamente monarquista.

Aimeé Césaire – poeta, dramaturgo, ensaísta e político negro da Martinica – faz um questionamento em seu clássico “Discurso sobre o colonialismo” que pode nos levar a pensar como seria tornar as casas e os centros de poder dos oficiais do período nazista em hotéis; e fazer desses ambientes reconstruções minuciosas das condições de tortura em que os judeus, ciganos, austríacos e poloneses (entre outros grupos) se encontravam. É concebível uma realização nesses termos ser construída sobre pretexto turístico na Alemanha nos dias de hoje? Por que esse nível de desserviço pode ser compatível no momento atual para a representação de grupos negros em um dos momentos mais sangrentos da história do Brasil?

Isso só pode ser concebível por uma elite de herdeiros que romantizam a classe branca europeia do período colonial/imperial e buscam endossar por diversos recurso de linguagem a crueldade do colonialismo. Nessa peça audiovisual, seja por uma trilha sonora sutil e encantada, para não dizer nostálgica e digna de um dos clássicos de Walt Disney, ou por um hiperfoco quase leiloeiro na cultura mobília de origem europeia, escolhe-se narrar sempre partindo da centralidade protagonística do patriarcado na pretensão de validar a importância dos barões do café para a economia, sua legitimidade cultural e defesa histórica enquanto senhores de engenho.

Existe um recorte em dado momento do primeiro episódio quase zoológico em relação as representações dos negros escravizados e na reconstrução por esculturas das pessoas negras nesse ambiente. É curioso perceber que há também um detalhamento específico dedicado à segunda parte da obra no registro dos objetos de tortura, controle e cárcere dos escravizados que não recebem o mesmo nível de detalhamento ou carga depreciativa no interior da Fazenda, na parte “hotel”. Como se houvesse uma diferenciação possível e leituras apartadas para cada local da fazenda. Em uma espécie de exercício infantil e a-histórico de “parte boa” e “parte ruim”, o lado bonito, célebre e precioso que podemos nos orgulhar e a parte vergonhosa, nefasta e “malvada” que podemos eventualmente esquecer ou pior, não as considerarem como partes da mesma estrutura material e cultural da nossa “Belle Époque”.

Um outro aspecto desse universo enviesado construído pelo programa e nessa fazenda em especial está na ausência de representações em esculturas nas casas. O tour e a presença em memória dos barões, fazendeiros e colonizadores é estimulada pela preservação de objetos, artefatos e quadros sem que haja esculturas, estatuetas ou representações humanoides, nem mesmo nos ambientes internos das senzalas por parte desses agentes. A única representação que há, humana (ou quase), é a de figuras negras anônimas. Se por um lado esse anonimato representa uma visão total e desidentificada do que são “os negros” no período, ela também parece tecer um comentário sobre a identidade desses grupos, o que eles não podem esquecer sobre eles mesmos e a visão que os herdeiros e fazendeiros desses estabelecimentos nutrem pelo momento recente na nossa história.

Em um exercício de listagem, poder-se-ia destacar que não existem elementos afirmativos da cultura negra na representação das senzalas (1), os únicos aspectos representados é a condição passiva de oprimidos animalizados e conformados com a condição de escravos – como se os negros não fossem mineradores desde África, bem como construtores com conhecimentos vastos de arquitetura e aldeamento, para citar exemplos. A condição de sofrimento deles é mostrada como central na sua representação, sem a contraparte de um agente opressor, o senhor de engenho não é

encarnado nunca em posições de açoite, tortura ou estupro (2). De algum modo se aprendeu a representar todo esse sofrimento a partir das pessoas negras isoladamente, como se as mesmas fossem de alguma forma responsáveis pelo seu próprio martírio. Há um negro que sofre em esculturas, mas nunca um agente opressor não-negro – portanto os negros entre si se colocaram nessa posição, entre si o negro é a vítima e causador do seu próprio pesadelo. E por fim, em um esforço sintético e não esgotante dos desserviços da série, não existe representação de outras passagens da presença negra para além da senzala (3). Onde está a capoeira? O quilombo? Os instrumentos? A rebeldia? Os negros representados não apenas sempre sofrem, mas nunca são agentes ativos de atos de resistência, desobediência ou revelia diante de sua condição de desalento.

Assim, a colonização em sua política da imagem e produção de pensamento causa danos à autoimagem e construção da subjetividade de pessoas negras e afrodiaspóricas que remetem a um momento no Brasil onde esse debate não chegava aos grandes meios de difusão. A proliferação desse tipo de produto audiovisual não são penas uma ameaça a construção simbólica e de caráter do brasileiro médio, mas são um atentado contra tudo que se têm produzido no campo das ciências sociais acerca da história recente do nosso país. Abdias do Nascimento, importante intelectual, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras sempre fez questão de frisar que a história da escravidão do Brasil deveria mudar de nome, deveria ser chamada de a história da luta e resistência negra contra a escravidão no Brasil. Onde essa luta se dá na peça

panfletária do programa colonizador? Ela é invisibilizada, intencionalmente ou não, essa história é irresponsavelmente apagada em movimentos estéticos e informativos que colocam a Casa Grande como o único núcleo histórico protagonístico possível para Brasil.

Algrin David

11/12/2022

Algrin David é curador, crítico e realizador audiovisual. Graduando em Estudos de Mídia pela UFF, é membro fundador do selo audiovisual de realizadores Filmes Del Cielo e do podcast Entretanto Cinema, além de membro do Grupo de Pesquisa e Extensão Cinema e Memória na América Latina (IACS/UFF). Em seu percurso artístico e existencial vem atuando em projetos com perfis mais coletivos e ou autorais em que temáticas como desigualdade, racismo, juventude e vivências urbana e afrobrasileiras são recorrentes.

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