A Organização Interamericana de Defensoras e Defensoras das Audiências (OID) e a Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC) enviaram ao GT de Comunicação do governo de transição uma carta com sugestões para a Ouvidoria da EBC. Confira a íntegra do texto:

 

Caras(os) colegas do GT Comunicação,

A experiência pela qual o Brasil passou nestes últimos quatro anos sob a presidência de Jair Bolsonaro pode ser observada com o necessário distanciamento crítico. O campo da comunicação social foi um dos que mais ostensivamente produziram elementos que podem ser identificados como peças fundamentais do motor que levou o país à difícil e desafiadora situação atual.

Em uma rápida mirada, tomando por base a complementaridade do sistema de radiodifusão entre público, privado e estatal, conforme estabelece o Art. 223 sobre Comunicação Social na Constituição Federal, na realidade discursiva o que pudemos observar foi uma troca de lugares entre grupos de comunicação, de acordo com interesses imediatos no desenrolar do jogo político e econômico, na disputa pela hegemonia política e ideológica.

No campo privado, a concentração dos meios de comunicação permitiu que se pudesse ver claramente como se delineavam os posicionamentos de emissoras, tanto de TV como de rádio e outras mídias, dependentes da relação de favorecimento do governo. Comportaram-se como empresas de comunicação estatal, geralmente subvertidas pela ordem de comunicação governamental.

Neste panorama, redes sociais e grupos de relacionamento virtual, da forma como se mostraram neste longo episódio de quase quatro anos, funcionaram e ainda funcionam como os próprios mantenedores os descrevem: um gabinete do ódio.

A parte pública do sistema, sob administração da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), foi apropriada pelo governo de uma forma jamais imaginada, com enaltecimento pessoal, ufanismo e otimismo forjado, com edulcoração da realidade mais pungente.

A partir de abril de 2008, com a Lei 11.652 que cria a EBC e institui os princípios e objetivos da radiodifusão pública, o campo da pesquisa acadêmica em comunicação e em diversas outras áreas conexas viu crescer não apenas o interesse pelo tema, mas também uma profusão de estudos a níveis de graduação, pós-graduação, cursos de extensão, com uma produção relevante inclusive de monografias de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Em resumo, o esforço acadêmico, assim como o empenho de empregados e empregadas da EBC – muitos dos quais buscando formação específica nas universidades – revelava a disposição de que o sistema público de radiodifusão do Brasil tivesse identidade própria, mesmo que, em um primeiro movimento, buscando comparações com modelos internacionais consagrados.

Em um contexto de hegemonia e concentração do sistema privado de comunicação, com o sistema estatal historicamente instrumentalizado, transformado em uma espécie de comunicação de publicidade governamental, o parâmetro básico para a construção da parte pública do sistema era o da dessemelhança: nem o modelo privado, comercial, nem o modelo estatal, tendo o controle social como paradigma inamovível, representado por um Conselho Curador com a participação da sociedade civil e em diálogo permanente com a profusão de conhecimento produzido nas universidades.

O público, ou as audiências, pouco familiarizadas com os conteúdos que primavam pelo interesse público e não comerciais, eram levadas a crer, pela chamada grande imprensa, que os canais públicos eram apenas para exibir propaganda de governo – por exemplo, a TV Brasil ganhou logo o apelido de “TV Lula”. No entanto, como uma espécie de antecipação, a própria Lei de criação da EBC traz no seu arcabouço um elemento de enfrentamento a esse discurso, quando institui a Ouvidoria e estabelece os seus princípios de atuação:

“Art. 20. A EBC contará com 1 (uma) Ouvidoria, dirigida por 1 (um) Ouvidor, a quem compete exercer a crítica interna da programação por ela produzida ou veiculada, com respeito à observância dos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública, bem como examinar e opinar sobre as queixas e reclamações de telespectadores e rádioouvintes referentes à programação”.

Note-se que entre os princípios e objetivos da radiodifusão pública, pelos quais a Ouvidoria deverá zelar, estão “desenvolver a consciência crítica do cidadão (…) ; fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação; cooperar com os processos educacionais e de formação do cidadão”.

Percebe-se daí que o tipo de serviço prestado pelo sistema público de comunicação é específico e singular no conjunto de serviços prestados pelos entes públicos em todas as suas esferas, o que obviamente também tornam singulares as ouvidorias de sistemas públicos de comunicação social no conjunto das ouvidorias federais.

A Lei 13.460, de 26 de junho de 2017, que “dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública”, determina a instalação do serviço de ouvidorias nas esferas da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Trata especificamente da prestação de serviços que vão pouco além da burocracia da administração pública sem, contudo, diferenciar o tipo de serviço que é prestado em termos de radiodifusão.

No entanto, faz uma ressalva em seu Art.13: “As ouvidorias terão como atribuições precípuas, sem prejuízo de outras estabelecidas em regulamento específico (…)”. E este é o caso da Ouvidoria da EBC, que tem suas atribuições estabelecidas em regulamento específico, assim como naturalmente deverá ser a de outras ouvidorias da mesma natureza que se venham a estabelecer na prestação do serviço de radiodifusão no campo público da comunicação social. É preciso notar que as atribuições de uma ouvidoria para serviços da natureza dos que são prestados pelos veículos públicos da EBC guardam especificidade que faz com que as ouvidorias se diferenciem das demais, exigindo inclusive formação específica.

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff interrompeu o movimento de construção e consolidação do sistema público de radiodifusão, submetendo-o ao desmonte iniciado pela face pública do projeto, representada principalmente pelo Conselho Curador, que foi imediatamente extinto. Na sanha de redução da participação social na gestão da EBC através da Medida Provisória 744/2016, a Ouvidoria foi poupada, talvez por terem entendido o setor não em sua missão estratégica, mas apenas como um canal de atendimento ao “usuário”, como dispõe de maneira geral a Lei 13.460.

Para a Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação, que deve zelar pelos princípios e objetivos estabelecidos na Lei de criação da EBC, o conceito simplista de “usuários” não se aplica. As audiências a quem a radiodifusão pública e a Ouvidoria servem é o conjunto da sociedade, como cidadãos e cidadãs com quem se deve dialogar em sentido pedagógico, para a consolidação do que se pretende seja um sistema público de comunicação, capaz de enfrentar em posição de igualdade os desafios do campo amplo da comunicação como hoje se apresenta.

Para isso, torna-se estratégico o fortalecimento, a difusão, a ampliação das ouvidorias do sistema público de radiodifusão, levando em conta sua singularidade e especificidade em relação às ouvidorias das demais instâncias públicas.

Atualmente, a Ouvidoria da EBC permanece na estrutura da empresa, mas comandada por um militar sem a formação necessária para o exercício da função. Diante do exposto e conscientes de que os desafios que estão por vir têm suas bases plantadas nos processos de produção comunicacionais, trazemos nossa contribuição a este Grupo de Trabalho através das seguintes sugestões:

1. Com o retorno do Conselho Curador da EBC, resgate das normas estabelecidas pelo colegiado sobre o perfil profissional e acadêmico desejável aos postulantes ao cargo de Ouvidor geral, incluindo-se as normas também para o cargo de ouvidores adjuntos;

2. Inclusão de canais e emissoras de rádio e TV do campo público da radiodifusão dos entes federativos nas mesmas diretrizes da EBC, inclusive no que se refere à Ouvidoria.

3. Adequação da Portaria 4334/2015 que regulamenta o Art. 8º. da Lei 9.612/98 que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária (RadiCom). A Portaria diz que a entidade autorizada a explorar o serviço deverá instituir um Conselho Comunitário, ao qual atribui funções de Ouvidoria. Entendemos que o serviço de Radiodifusão Comunitária, levando-se em consideração o ecossistema comunicacional como hoje o vemos, é também estratégico para o fortalecimento da democracia e o enfrentamento dos discursos de ódio, além do letramento das audiências para a leitura crítica do discurso das diferentes mídias, inclusive das rádios comunitárias. Para isso, é crucial que o trabalho de avaliação, supervisão e mediação das demandas do público em relação às rádios comunitárias seja realizado por ouvidor ou ouvidora capacitado/a para o exercício da função, sendo nomeado dentro de critérios que lhes garantam autonomia.

4. A exemplo de práticas desenvolvidas em países como México e Argentina, estímulo à formação de ouvidoras/es em sistemas públicos, privados e comunitários de comunicação social, através de parcerias, acordos de cooperação ou convênios com Universidades, Centros de Pesquisa em Comunicação, Institutos Federais e Organizações da Sociedade Civil.

5. Elaboração de Projeto de Lei que estabeleça as especificidades e discipline o conjunto de atribuições e competências de ouvidoras/es de serviços públicos de radiodifusão, aí incluídos os serviços de rádios e TVs comunitárias.

6. Resgate de propostas debatidas e aprovadas na 1a. Conferência Nacional de Comunicação relacionadas ao escopo do GT, tomando como referência o relatório disponível em: https://intervozes.org.br/publicacoes/confecom-10-anos-depois/

 

Estamos à disposição para quaisquer esclarecimentos.

Atenciosamente,

Joseti Marques, presidenta da Organização Interamericana de Defensoras e Defensoras das Audiências (OID), joseti.marques@oidaudiencias.org

Fernando Oliveira Paulino, presidente da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC), paulino@unb.br

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados *

Postar Comentário