Nos últimos dias de 2022 e primeiros de 2023, a Agência Brasil produziu uma série de reportagens sobre os desafios que o novo governo, que tomou posse no dia 1º de janeiro, vai enfrentar. Foram tratados diversos temas, com base no relatório do Gabinete de Transição. Os textos foram publicados entre os dias 23 de dezembro e 2 de janeiro.
Entraram na lista, por ordem de publicação, os direitos humanos, relações internacionais e diplomacia, economia, educação, desenvolvimento social, saúde, cultura, meio ambiente e justiça e segurança pública, esta última a única que traz análise de um especialista. No caso, o advogado Marivaldo Pereira, que integrou o grupo técnico de transição e vai comandar a nova Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério, responsável pela interlocução com o Poder Judiciário e movimentos sociais.
Apesar de os textos serem baseados apenas no relatório da Transição, sem análises por especialistas ou contextualização mais aprofundadas – com exceção do último -, eles refletem bem o desmonte do Estado e das políticas públicas que foi promovido pelo governo Jair Bolsonaro, incluindo questões tão básicas e essenciais como a merenda escolar, cobertura vacinal, combate à violência contra a mulher e a relação diplomática com os países vizinhos.
Felizmente, a série não condiz com a postura extremamente aderente ao governo Bolsonaro que a Agência Brasil adotou nos últimos anos. E esperamos que não seja uma sinalização de que a mudança de governo implique numa automática adesão acrítica às pautas dos novos mandatários do país.
Comunicação
Porém, sentimos falta, na série, de um setor extremamente importante para a retomada democrática do país, sobre a qual temos falado nesta Ouvidoria Cidadã da EBC desde o seu lançamento, em dezembro de 2020: justamente as comunicações, incluindo aqui o que foi falado e o que se espera da própria EBC para o próximo governo.
Na matéria sobre a divulgação do relatório da Transição, no dia 22 de dezembro, entrou a informação de que a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) deveria ser retirada do Programa Nacional de Desestatização (PND). Sem maiores detalhes, apenas em meio a uma lista de empresas que têm “grande relevância nacional” e não serão privatizadas pelo novo governo.
Neste relatório compilado, a sigla EBC aparece oito vezes. As duas primeiras menções, na parte relativa ao Ministério das Comunicações, é citado o “desmonte do sistema de comunicação pública, previsto na Constituição Federal”, com a EBC “reduzida ao papel de mera produtora de conteúdos governamentais, com a mobilização de suas rádios, agência e emissora de TV para essa finalidade”. O documento cita que “casos de censura também foram denunciados por trabalhadores, evidenciando a instrumentalização política que privou a população brasileira do direito de acesso à informação pelos canais públicos de comunicação”, bem como a inclusão da empresa no Programa Nacional de Desestatização (PND).
No diagnóstico da Comunicação Social, cinco menções explicitam que “a EBC foi uma das instituições mais impactadas pelo ciclo de retrocessos do atual governo”, com ameaça de extinção já na campanha eleitoral de 2018, entrada no PND, aparelhamento da empresa e uso político das emissoras, com a fusão da TV Brasil com a TV NBR, além da censura, assédio moral coletivo, perseguições e práticas antissindicais sofridos pelas trabalhadoras e trabalhadores da EBC e pelas representações.
“Diante da inviabilidade da privatização, e percebendo a utilidade dos canais para sua guerra cultural e projeto de reeleição, passou à fase do aparelhamento. Nomeou gestores de perfil inadequado ou claramente hostis à democracia para a emissora”, ressalta o relatório.
As ações de resistência, como esta Ouvidoria Cidadã da EBC, apareceram no documento:
“A Ouvidoria Cidadã e a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública elaboraram dossiês que apontam, entre os temas mais censurados: direitos da população negra e indígena, demandas das mulheres negras, investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, e matérias sobre reforma agrária, desmatamento, meio ambiente, mudanças climáticas e referências à ditadura militar”.
Por fim, o texto fala da interferência na cobertura da pandemia, com a EBC citada no relatório final da CPI por difusão de conteúdo negacionista, bem como a extinção do canal internacional da TV Brasil e a redução drástica da produção própria de conteúdos, coproduções e produtores independentes.
A última menção à EBC no relatório aparece na parte de sugestões de atos que devem ser revogados, para tirar a empresa do processo de privatização. “Sugere-se que o Presidente da República edite despacho orientando os Ministérios responsáveis a revisar os seguintes atos relativos a empresas de grande relevância nacional”, incluindo na lista a Petrobras, os Correios, a EBC, a Nuclep, PPSA e Conab. O que já foi feito pelo presidente Lula no dia 1º de janeiro, com o despacho publicado no Diário Oficial da União no dia 2.
Conselho Curador
Uma questão importantíssima para a comunicação pública foi deixada de fora do relatório final: a retomada do Conselho Curador da EBC. O ponto foi amplamente discutido no Seminário Reconstrói a EBC e a Comunicação Pública e consta no Caderno de Propostas decorrente da discussão. Documento que foi entregue à equipe da transição. Porém, uma nota publicada no site do gabinete retomou este ponto, deixando claro que o tema foi tratado pelo GT de Comunicação e consta no relatório setorial.
“O relatório entregue pelos integrantes do Grupo Técnico de Comunicação Social do Gabinete de Transição pede a retomada da participação social na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). De acordo com o diagnóstico produzido pelo GT, a empresa foi alvo de um contínuo processo de desfiguração, que começou ainda no governo de Michel Temer, com a extinção do Conselho Curador por meio de uma medida provisória”, destaca o texto.
O GT destaca também que o ataque promovido pelo governo Temer abriu caminho para a militarização promovida por Bolsonaro na empresa e a utilização dos canais “para sua guerra cultural e projeto de reeleição”. “A TV Brasil teve sua programação desfigurada, com a descontinuação de muitos programas”, além de ter “a programação interrompida para as transmissões oficiais, que incluíam atos militares e até religiosos”.
A falta de interesse da EBC em discutir o tema da comunicação e da comunicação pública em si, assim como do próprio governo eleito, materializada na entrega do Ministério das Comunicações ao União Brasil (https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/entidades-pedem-a-lula-que-nao-entregue-comunicacoes-ao-uniao-brasil-veja-manifesto/ e https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2022/12/29/lula-rifou-area-de-comunicacao-em-nome-da-governabilidade-criticam-aliados.htm) e com a vinculação da EBC à Secretaria de Comunicação, na Presidência da República, demonstra que teremos, como sociedade civil, que continuar na luta e na resistência por uma comunicação mais democrática e inclusiva no país. Que de fato contribua para fomentar o pensamento crítico na sociedade e promova a inclusão no direito à informação de qualidade, conforme previsto na lei de criação da EBC e na própria Constituição Federal.