No dia 19 de setembro, um GENERAL esteve no programa SEM CENSURA da TV Brasil. E não foi para censurar ou intervir na TV pública, como poderia se esperar nos tempos em que os militares estavam no poder. Ou o receio que pode ter permanecido na época da estreia do programa, em 1985, quando o nome fazia sentido, em meio à lenta e gradual reabertura política após 24 anos de ditadura militar que impôs, entre outras coisas, censura ferrenha aos meios de comunicação e manifestações artísticas.

“O tema do Sem Censura é o Exército Brasileiro. General Hertz Pires do Nascimento é o convidado da semana”, anuncia a página do programa (https://tvbrasil.ebc.com.br/sem-censura/2022/09/o-tema-do-sem-censura-e-o-exercito-brasileiro), com direito a matéria chamando para a entrevista na Agência Brasil (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-09/exercito-brasileiro-e-tema-do-sem-censura-desta-segunda). Não sabemos se por deboche ou puro cinismo, mas o fato é que o Sem Censura abriu seu estúdio para insuflar a instituição, que tem “números de dimensões continentais” nas suas vertentes “Braço Forte e a Mão-Amiga”.

Entre os entrevistadores convidados, mais deboche (ou cinismo) na cara da diversidade que deveria ser marca da TV pública: o jornalista Alexandre Garcia, da TV Jovem Pan News, ex-TV Globo, porta-voz do último presidente da ditadura militar do Brasil, general João Batista Figueiredo, e demitido da CNN em setembro do ano passado por falar mentiras a respeito da eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19. O outro debatedor da noite foi o professor de História Militar Sandro Teixeira. Ninguém para contrapor as “façanhas” do exército brasileiro e nem ao menos analisar criticamente os fatos.

Após destacar números e ações do exército, o vídeo introdutório apresenta o General Hertz Pires do Nascimento, atual vice-chefe do Estado Maior do Exército, como o “convidado pra lá de especial” da noite, bordão utilizado pela apresentadora Marina Machado para iniciar o programa.

Ao iniciar o debate, Marina tentou justificar a entrevista sobre o exército trazendo o contexto da independência do Brasil, celebrada aos quatro ventos pelo governo federal nesse bicentenário, como parte da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro ( https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/ebc-fez-cobertura-oficialesca-e-foi-assessora-de-bolsonaro-no-7-de-setembro/). Após responder curto e grosso que o exército foi o “garantidor da independência”, o general exaltou o colonizador:

“Portugal, quando os seus navegadores desembarcaram aqui, eles não vieram como aventureiros. Eles vieram trazendo tradição, uma religião, uma língua consolidada e a experiência administrativa. Por isso é que logo na sequência eles tinham o objetivo de ocupar a terra e aprofundar as suas descobertas, dominando as bacias hidrográficas, colocando os seus marcos, construindo os fortes.”

Todo o programa foi uma sequência de perguntas levantando a bola para o general cortar. Abordaram temas como a participação nas missões de paz da ONU, a integração das mulheres às forças armadas, a defesa da Amazônia em meio às dificuldades logísticas, o respeito ao meio ambiente. Também foi apresentado um show de jargões descontextualizados e sem problematização, como o “pacificador Duque de Caxias”, o “sentimento de nacionalidade” que surgiu no episódio da expulsão dos holandeses de Pernambuco, a “fusão harmônica das três raças” na corporação, a “identificação do exército com o povo”.

Destacamos a fala do general a respeito do serviço militar obrigatório: “O jovem passa pelo desafio de ser selecionado para servir. O exército incorpora 52 mil soldados/ano. Que outra instituição oferece a oportunidade para 52 mil jovens/ano?” 

Porque, como todos sabem, os jovens brasileiros de 18 anos estão exultantes com a possibilidade de servir à pátria no alistamento militar obrigatório (contém ironia).

Após ser apresentado um vídeo com o depoimento de uma esposa de militar, sobre a vida da família que abdica de estabilidade profissional e escolar e da residência fixa para acompanhar o militar, o general destacou o Dia da Família Militar, em homenagem a Rosa da Fonseca.

“Ela teve dez filhos, duas mulheres, oito homens. Um ficou em Alagoas, sete foram para a campanha da Tríplice Aliança [Guerra do Paraguai, de 1864 e 1870]. Três morreram, dois [ficaram] gravemente feridos, um era o Deodoro da Fonseca [marechal que “proclamou a república” em 1889]. Sabendo disso, ela disse: ‘não vamos chorar a morte dos meus filhos, vamos agora celebrar a vitória de minha pátria. Para chorar a morte dos meus filhos eu tenho o resto da vida’”. Celebrando, com isso, a abdicação feminina em favor da pátria.

Já no fim do programa, depois do general explicar que todos os alojamentos têm seções exclusivas para mulheres, com dormitórios, vestiários e banheiros separados dos masculinos, a apresentadora solta um totalmente desconexo “é o girl power funcionando no exército”. Vergonha alheia é pouco para quem trabalha em uma empresa que deveria prezar pela equidade de gênero e pela agenda 2030 da ONU.

Alexandre Garcia, a todo momento, interrompia o entrevistado para demonstrar seus conhecimentos sobre o exército. “O Exército me fez reservista símbolo, junto com o Pelé. Uma honra”. “Vou dar meu depoimento a respeito de 1964”, falou o jornalista, se gabando da própria participação na história militar brasileira.

Outro destaque do programa foi dado para o Cabo Max, a inteligência artificial que atende ao público nos canais eletrônicos do exército. Ao se despedir da apresentadora, o robozinho, via videoconferência, diz: “se quiser conhecer o meu trabalho ou me ver fazendo flexões, é só entrar em contato”. Fazendo flexões. Isso te lembra algum ocupante do Palácio do Planalto?

Aproveitando o tema militar, reiteramos que a TV Brasil deveria ter a honradez de mudar o nome desse programa semanal de entrevistas oficiais e oficialescas, para preservar alguma dignidade do histórico Sem Censura, que foi um símbolo da democracia do país.

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