Joseti Marques
Presidenta na Organización Interamericana de Defensoras y Defensores de las Audiencias
A comunicação pública no Brasil, consubstanciada por emissoras de rádio e TV que assim se definem desde a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), nasceu como gata borralheira em um contexto em que as empresas de comunicação comerciais, acostumadas a privilégios políticos e concessões de Estado, sempre reinaram hegemônicas no baile do sistema de radiodifusão brasileiro.
Com a promulgação da Constituição Cidadã de 88, trinta e oito anos depois da inauguração da primeira TV no Brasil, o público começa a ocupar seu devido direito, e deixa de ser considerado apenas plateia em todas as dimensões da vida social, inclusive como audiência. A borralheira é então apresentada como um dos entes do sistema de radiodifusão, baseado na complementaridade entre privado, público e estatal – assim mesmo, nesta ordem, conforme está na lei; o público entre duas forças que lhe são ostensivamente antagônicas, se pensarmos que hoje o Estado se confunde como o governo que o administra.
Mesmo assim, o convite para a festa da comunicação só veio 19 anos depois, com a criação da EBC. Poderíamos seguir com a metáfora da borralheira para dizer de toda a sorte de boicotes e ataques a que foi submetida a comunicação pública, notadamente a TV Brasil, e que culminou com a cassação do Conselho Curador, que lhe conferia identidade pública.
No entanto, tendo em vista a decisão da 6ª. Turma do Tribunal Regional da 2ª. Região, em novembro passado, sobre ação civil pública movida em face da EBC e da União, mais apropriado do que a metáfora do conto clássico seria parafrasear o samba do inesquecível Nelson Sargento, sobre as forças que solaparam o samba ao longo do tempo: mudaram toda a sua estrutura, te impuseram outra cultura, mas a comunicação pública, assim como o samba, agoniza, mas não morre. Foi uma vitória parcial, é bem verdade, mas cada um dos embates se mostrou revelador dos caminhos ainda possíveis de se percorrer e da força dos que persistem nesta luta.
Em ação civil pública, o Ministério Público Federal (MPF) pediu a anulação de portaria, editada pela EBC em abril de 2019, que fundiu os canais público (TV Brasil) e estatal (TV NBR), passando a transmitir os conteúdos indiscriminadamente pela TV pública. A TV Nacional do Brasil (TV NBR) foi inaugurada em junho de 1998 para transmitir atos do governo federal. Com a criação da EBC e implantação dos veículos públicos de comunicação, em 2007, a programação da TV NBR passou a ser produzida como prestação de serviços ao governo federal, pelo setor de serviços e negócios da EBC, a EBC Serviços, sem nenhuma relação com a programação da emissora pública.
O argumento do juiz para negar provimento merece leitura atenta:
“(…) não há como segregar o conteúdo tipicamente estatal – de publicidade das ações governamentais – e o conteúdo propriamente de interesse público. Anote-se, inicialmente, a evidente zona cinzenta existente na fronteira entre tais espécies de conteúdo, o que torna árdua a classificação…”.
E prossegue em seu entendimento sobre a dificuldade de se distinguir alhos de bugalhos:
“Nesse contexto, torna-se impossível realizar um amplo juízo conteudístico com a finalidade de classificar cada um dos programas veiculados pela EBC como de conteúdo “estatal” ou “público independente”, até mesmo porque muitas vezes este juízo estará atrelado a uma percepção subjetiva a respeito da linha política ou ideológica que venha a ser adotada em determinado programa, tais como programas de entrevistas ou telejornais. A tarefa hercúlea de exercitar um juízo tão amplo não pertence ao Poder Judiciário, pois representa ingresso direto no âmago do mérito da atividade administrativa.”
O MPF apelou da decisão, argumentando que, por óbvio, não se poderia permitir a mistura daquilo que não se consegue sequer divisar a diferença:
“Ocorre que defluem dos fundamentos da própria sentença os argumentos que ensejam sua reforma. Ora, se a tarefa de identificar e distinguir a natureza “estatal” ou “pública independente” de cada programa é tarefa hercúlea até mesmo para o Estado-Juiz, que dirá para o telespectador comum a quem passa a ser impossível separar a propaganda governamental camuflada e amalgamada ao conteúdo de produção independente.”
No entanto, não precisaria muito mais do que acompanhar a programação da emissora pública para distinguir o que é público, por exemplo, do que seria comunicação de estado e que, ao final e ao cabo, é mesmo proselitismo político, ferindo a lei da própria EBC em seu Art, 2º. § 1º.: “É vedada qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão.”
Data maxima venia, excelências, vamos então aos bugalhos para esclarecer sobre o que não se pode misturar, sob pena de se extinguir um dos entes, no caso o mais frágil, que é a comunicação pública. As informações que se seguem podem ser vista em detalhes no site da Ouvidoria Cidadã da EBC:
As interrupções da grade de programação da TV Brasil para a entrada ao vivo de eventos com o presidente Jair Bolsonaro somaram 78h37min04s nos sete primeiros meses de 2021, com um total de 97 eventos transmitidos. Só em 2019, a partir da entrada em vigor da Portaria que uniu as duas emissoras, as interrupções na grade para eventos com Bolsonaro somaram 51h44min01s, com 90 transmissões ao vivo. São comuns as formaturas de escolas militares, cultos religiosos e inaugurações de obras, essas com forte caráter de propaganda eleitoral antecipada, como na entrega do Residencial Solar São Mateus, no Espírito Santo, com direito a um showmício, que interrompeu a programação da emissora pública por 1h20min50s e exibiu uma camiseta com o slogan “Bolsonaro 2022”.
Como se ainda fosse pouco, a “live da fraude eleitoral” do dia 29 de julho, desacreditando o sistema eleitoral brasileiro, ocupou 2h07min50s da grade de programação da TV Brasil. Cerimônias de juramento à bandeira e entrega de espadim da Escola Naval merecem mais atenção do que informações sobre vacinação contra Covid-19 – a primeira teve 1h29min25s de transmissão, enquanto a segunda, apenas 19m45s.
Do ponto de vista imediato, anular a Portaria da EBC seria a confirmação da percepção da justiça sobre a importância da comunicação pública, embora na prática pudesse resultar em quase nada. No entanto, duas outras demandas do MPF foram acolhidas: a manutenção, conforme dita a lei, das unidades do Maranhão, Rio de Janeiro e Distrito Federal como produtoras e radiodifusoras e não como meras repetidoras, como queria a gestão da EBC, e a implantação do Comitê Editorial e de Programação, também previsto em Lei.
Quanto à instalação do Comitê Editorial e de Programação, os advogados da EBC argumentaram que esta é uma prerrogativa do Executivo, cabendo a decisão ao presidente Jair Bolsonaro, e que a imposição judicial seria interferência em outro Poder. No que foi rebatida:
“O pedido em questão representa o dever de regulamentar um comando legal após a omissão injustificada de mais de três anos, não representando, contudo, qualquer ingerência do Poder Judiciário sobre uma política pública do Poder Executivo.”
Para uma Justiça que considera um esforço hercúleo divisar entre o que é comunicação pública e comunicação estatal, podemos dizer que, ao acatar a demanda por instalação do Comitê, atirou no que viu e acertou o que não viu. Explico:
O Comitê Editorial e de Programação está previsto na Lei 13.417/17 que alterou a Lei n° 11.652/2008. Esta lei, do governo Temer, teve como principal objetivo colocar panos quentes e minimizar a percepção de ataque à face pública da EBC com a extinção do Conselho Curador. O Comitê Editorial foi uma espécie de paliativo que nunca chegou a ser operacionalizado, após três anos de inclusão na lei, como bem lembra o magistrado na decisão de agora.
Na época, não se poderia imaginar que o panorama desolador para a comunicação pública, que se instalou com o golpe político institucional de 2016, ficaria ainda muito pior. Desta forma, o Comitê Editorial e de Programação ressurge como uma frágil, mas possível forma de resistência da comunicação pública contra as excrescências do Governo Bolsonaro. Veja:
“Art. 15: O Comitê Editorial e de Programação, órgão técnico de participação institucionalizada da sociedade na EBC, terá natureza consultiva e deliberativa, sendo integrado por onze membros indicados por entidades representativas da sociedade, mediante lista tríplice, e designados pelo Presidente da República. (…)
§ 2o É vedada a indicação ao Comitê Editorial de Programação de:
I – pessoa que tenha vínculo de parentesco até terceiro grau com membro da Diretoria Executiva;
II – agente público detentor de cargo eletivo ou investido exclusivamente em cargo em comissão de livre provimento da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios.
(…)
§ 12. São vedadas indicações originárias de partidos políticos ou instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais ou confessionais.
E arremata o magistrado, acreditando que a solução à demanda que não foi atendida pode encontrar neste Comitê algum alento:
“Como visto a instituição e manutenção do Comitê Editorial e de Programação constitui elemento essencial à garantia de independência frente aos interesses propriamente governamentais na definição da programação da TV pública em questão, contribuindo, em todos os níveis, para a efetivação e democratização do direito à comunicação em seu mais amplo espectro.”
Sim, é pouco, é frágil, é uma agonia, mas a comunicação pública resiste.
*Uma versão resumida deste artigo foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, no dia 04/01/22. Confira aqui.
Texto maravilhoso, didático e esclarecedor. É gratificante ver que uma jornalista competente e conceituada, continua uma a luta incansável,a favor da TV pública.
Obrigada!