As interrupções da grade de programação da TV Brasil para a entrada ao vivo de eventos com o presidente Jair Bolsonaro somaram 78h37min04s nos sete primeiros meses de 2021, com um total de 97 eventos transmitidos de forma ilegal pela TV pública. Em todo o ano passado, foram 157 eventos, que ocuparam a TV Brasil por 109h17min40s. O levantamento foi feito pela Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, com base nos arquivos “Agenda do Presidente” do canal da TV BrasilGov no YouTube.
A transmissão de eventos com o presidente da república pela TV Brasil começou em abril de 2019, após a portaria interna da EBC 216 unificar as grades da emissora pública TV Brasil e da TV NBR, a TV do governo federal, ambas operadas pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
A portaria “estabelece que a programação das emissoras de televisão TV Brasil e TV Nacional Brasil – NBR será apresentada em um só canal”. O texto dispõe que a unificação “preservará o princípio da complementaridade dos sistemas público e estatal, sem qualquer prejuízo ao art. 223, caput, da Constituição Federal de 1988”.
Porém, tal junção significa exatamente o contrário do que diz a portaria, pois o ato extingue a separação que existia entre o canal público e o canal estatal. Entidades de defesa da liberdade de expressão e da democratização da mídia denunciaram a inconstitucionalidade da medida, como o Conselho Curador Cassado e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Só em 2019, a partir da entrada em vigor da Portaria 216, as interrupções na grade da TV Brasil para eventos com Bolsonaro somaram 51h44min01s, com 90 transmissões ao vivo.
Formaturas militares, cultos e inaugurações
Muitos desses eventos com transmissão pela TV Brasil não atendem ao interesse público nem a critérios de noticiabilidade. São comuns as formaturas de escolas militares, cultos religiosos e inaugurações de obras, essas com forte caráter de propaganda eleitoral. Isso tudo com horas e mais horas de transmissão na TV que deveria atender ao interesse da sociedade, e não à promoção pessoal de um governante.
Entre os eventos, contamos 47 solenidades e cerimônias militares desde abril de 2019 até julho de 2021, que ocuparam um total de 48h17min28s da transmissão da TV pública, como formatura dos sargentos da Aeronáutica, entrega de espadim para cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras, brevetação dos novos paraquedistas, promoção de Oficiais-Generais e entrega da boina aos novos alunos do Colégio Militar.
Os eventos religiosos também chamam a atenção. Foram 12 no período, com um total de 10h07min04s, incluindo o culto de Páscoa que ocupou as antenas da TV Brasil por 2h29min06s no dia 23 de abril do ano passado. Na transmissão, diversos líderes religiosos e políticos se revezaram em elogios a Bolsonaro. A emissora também colocou no ar por 1h11min01s o Culto Interdenominacional das Igrejas de Anápolis no dia 21 de junho último e um culto em São Paulo no dia 5 de outubro de 2020 que durou 2h06min.
Um evento que descaradamente fez propaganda eleitoral antecipada para Bolsonaro foi o de entrega do Residencial Solar São Mateus, no Espírito Santo, com direito a um showmício, que interrompeu a programação da emissora pública por 1h20min50s e exibiu uma camiseta escrito “Bolsonaro 2022”.
Outro caso que teve muita repercussão, tanto pelo teor das declarações do presidente, como pelo formato adotado, foi a “live da fraude eleitoral” do dia 29 de julho último. No evento, Bolsonaro convocou a imprensa para acompanhar a sua tradicional transmissão ao vivo, que faz todas as quintas-feiras pelas redes sociais. A Secretaria de Comunicação da presidência enviou aviso de pauta aos veículos da mídia, informando que Bolsonaro faria “apresentação aos veículos de imprensa”. Sem direito a perguntas.
A TV Brasil embarcou nessa e colocou o presidente no ar por 2h07min50s, com ele elencando os maiores absurdos em relação ao sistema eleitoral brasileiro. Bolsonaro gerou desconfiança sobre a confiabilidade da urna eletrônica com base em teorias da conspiração, vídeos da internet sem confiabilidade de fonte e não apresentou nenhuma prova de fraude. Isso tudo ao vivo, na TV pública.
Outros eventos não fazem promoção do presidente, mas tampouco atendem ao interesse público. Tanto em 2019 como em 2020 a TV Brasil transmitiu a comemoração do aniversário da Independência dos Estados Unidos em 4 de julho, com cerca de meia hora em cada ano.
Por outro lado, eventos importantes para a geopolítica regional, como a LVIII Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados, no dia 8 de julho de 2021, teve duas inserções de apenas 8min05s e 9min15s. Em ano olímpico, a transmissão do anúncio de patrocínio ao Esporte Brasileiro, no dia 1º de junho, ganhou 32min50 na TV pública. Já para a assinatura do contrato de transferência de tecnologia da vacina AstraZeneca para a Fiocruz, no mesmo dia, foram dados meros 19min45s. Enquanto a cerimônia de Juramento à Bandeira e Entrega de Espadins na Escola Naval, no dia 19 do mesmo mês, foi transmitida por 1h29min25s.
A Ouvidoria Cidadã da EBC analisou algumas dessas interrupções na programação da TV Brasil, que entram com a chamada de “Governo Agora”. Tal intervenção sequer aparece na lista de programas da emissora. O modelo foi herdado da NBR e viola os princípios da comunicação pública de independência editorial do governo federal, diversidade de fontes e vedação do proselitismo. Sem falar nas inconvenientes interrupções da programação infantil, uma das únicas da TV aberta.
Outros programas governistas
Além dessas constantes interrupções na programação da TV Brasil, outros programas da NBR foram inseridos na grade regular, como o semanal de entrevistas Brasil em Pauta, onde “O povo fala, o governo responde!”, como diz a sinopse. Além disso, foi criado o jornal Brasil em Dia, com 15 minutos diários de notícias do governo, às 8h.
Destacamos, ainda, a volta do tradicional programa Sem Censura, criado em 1985 na TVE, antecessora da TV Brasil. Depois do início com a promoção de debates políticos, ele tinha se consolidado como um programa diário de entrevistas de variedades e espaço para divulgação de artistas. A atual gestão da EBC fez uma “reformulação” em março de 2020, reduzindo as entrevistas e a duração para 30 minutos diários, com mais entradas do jornalismo.
Em novembro de 2020 o programa foi retirado do ar e voltou no dia 5 de abril, novamente “repaginado”, agora com uma hora de duração, apenas uma vez por semana e participação de dois jornalistas convidados, além da apresentadora. No formato, são três entrevistadores para um convidado. Mas, ao contrário do que poderia ser uma maior variedade de questões, o que se viu até aqui foi um desfile de ministros e secretários respondendo perguntas sem relevância, promovendo o governo federal e defendendo as declarações do presidente Bolsonaro. De 17 programas desde a reestreia até o fim de julho, 13 foram com ministrou ou outros membros do governo.