Ouvidoria Cidadã destaca que diretoria da EBC joga no lixo esforços para garantir pluralidade na Faixa da Diversidade Religiosa

A decisão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) de licenciar a novela Os Dez Mandamentos, produzida pela TV Record, vai contra o artigo 223 da Constituição Federal. O artigo determina o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão: privado, público e estatal. Trata-se de desvirtuamento da Carta Magna e também da Lei de Criação da EBC (11.652), colocando o sistema público como braço auxiliar na divulgação de um único olhar sobre a religiosidade.

A novela conta uma das mais famosas passagens bíblicas: a saga de Moisés, desde o nascimento, até a chegada de seu povo à Terra Prometida, segundo a fé cristã. Para esta produção, foi feito um contrato de licenciamento pela TV Brasil com a TV Record, publicado no Diário Oficial em 30 de março de 2021, sob o número 60.628.369/0001-75. O valor do licenciamento é de R$3,2 milhões para a veiculação das duas temporadas da novela pela Rede Nacional de Comunicação Pública (formada por emissoras educativas, estaduais e universitárias), pelo aplicativo TV Brasil Play e pela TV Brasil, por um ano e meio na faixa nobre de exibição. 

Não há como colocar em prática a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal reproduzindo conteúdos que já foram exibidos e reprisados pelos menos quatro vezes pelo segundo maior conglomerado comunicacional do país[1] e que ainda ficou três anos disponível na plataforma de streaming Netflix[2]. Há notícias ainda de que a TV Record exibirá a telenovela bíblica concomitantemente, a partir de julho desde ano[3].

Cabe destacar que a TV Record faz parte do império empresarial da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). “Em 2007, a Igreja contava com 4.748 templos e 9.660 pastores; estava presente em 172 países – não apenas com templos físicos, mas também com emissoras de televisão, como nos casos de Moçambique e África do Sul – e detinha um imenso patrimônio que incluía construtoras, seguradoras, agências de turismo e uma empresa de táxi aéreo. A partir de 2013, Edir Macedo, fundador da IURD e dono da TV Record, comprou a participação em um banco. Em 2015, o empresário figurava no ranking da revista norte-americana Forbes como um dos mais ricos do mundo, com uma fortuna estimada em 1,1 bilhão de dólares”[4]

Índices de audiência não devem ser determinantes na escolha de conteúdos para uma emissora pública. Ainda que fosse esse o objetivo, a telenovela da emissora de Edir Macedo não se justificaria. Nesse caso, seria mais efetivo licenciar conteúdos da Rede Globo. O maior pico de audiência da novela “Os Dez Mandamentos” foi registrado no capítulo 116, exibido das 20h29 às 21h51 do dia 31 de outubro de 2015 pela Record, quando alcançou índices de 18,9 pontos no Ibope[5]. O capítulo, marcado por efeitos especiais, mostra a primeira praga do Egito, com a transformação das águas do Rio Nilo em sangue. Na mesma data e horário, a Rede Globo estreava da novela A Regra do Jogo que liderou a audiência com 31,5 pontos, o que ainda foi considerado baixo para os padrões da emissora líder[6].

Reverberar a telenovela da TV Record configura, ainda, prática de proselitismo religioso, o que é proibido pela Lei 8.652. A despeito da história bíblica ser uma referência para todas as denominações cristãs, e mesmo para o judaísmo, o modelo narrativo da novela reproduz a política do conglomerado de conversão de fiéis, como aponta Thiago José de Sousa em sua pesquisa sobre a telenovela: “Os Dez Mandamentos é senão uma adaptação fruto do seu tempo e do espaço em que está inserido o seu enunciador, a Rede Record de Televisão, uma emissora administrada por uma organização de ideologia cristã neopentecostal, de forte apelo proselitista e de grande capilaridade na sociedade brasileira, sociedade essa que tem presenciado nas décadas recentes o crescimento numérico de adeptos da fé evangélica em suas diferentes vertentes”[7].

Há ainda inúmeras críticas feitas por especialistas de whitewashing[8], ou “embranquecimento”, na telenovela. Apesar de a história se passar no continente africano, os protagonistas são todos representados por pessoas brancas. Registros científicos e arqueológicos sobre o Egito já revelaram que a população era, em grande maioria, negra. Em aula virtual sobre comunicação pública[9], o cineasta Joel Zito Araújo fez considerações sobre a produção. Ele destacou o modelo ultrapassado e racista do folhetim, que não condiz com a comunicação pública. 

“Telenovelas bíblicas que se apoiam em um modelo de Hollywood dos anos [19]50, de um Estados Unidos que não existe mais, em que toda a representação dos personagens bíblicos, que estão em uma faixa entre o Oriente Médio e a África e são representados como brancos, como arianos, repetindo as coisas mais conservadoras e tradicionais, é um exemplo da dificuldade que  temos até hoje, na luta por uma televisão que represente a diversidade racial e étnica do Brasil”, afirmou Araújo, durante o debate. O cineasta é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e tem pós-doutorado nos departamentos de Rádio, TV e Cinema e de Antropologia da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, sendo referência no setor audiovisual.

A exibição do folhetim também afronta os esforços da EBC e da sociedade civil de trazer mais pluralidade religiosa às emissoras públicas. Em 2011, com a intenção de substituir a programação católica e evangélica (notadamente os programas Reencontro, Santa Missa e Palavras de Vida), a EBC lançou um concurso público para contratar 52 episódios por R$ R$2,210 milhões. Com isso, a expectativa era a de que os realizadores da missa (a Arquidiocese do Rio de Janeiro) e o do programa evangélico Reencontro (idealizado pelo pastor Nilson do Amaral Fanini) deixassem, espontaneamente, a emissora, o que nunca ocorreu, apesar dos esforços da emissora. Os programas tinham sido “herdados” da antiga TVE e permaneceram no ar por meio de decisões judiciais

Em 2014, por meio do pitching, a EBC contratou 26 episódios de 52 minutos para a série Panorama, e mais 26 episódios inéditos de 26 minutos para a série Retratos da Fé[10]. O edital para a Panorama contratou programas sobre temas filosóficos e culturais ligados à religiosidade sob uma perspectiva jornalística. A Retratos da Fé, por sua vez, abriu espaço para que cada grupo religioso pudesse transmitir a sua mensagem de fé e expressar o sagrado de sua doutrina de forma direta, sem nenhuma mediação ou interferência. Os programas estrearam em 2017. Outros conteúdos passaram a compor a Faixa da Diversidade Religiosa da TV Brasil, contratados por meio de edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav) TVs Públicas[11], em parceria com a Agência Nacional do Cinema (Ancine).

A modalidade concurso/pitching foi desenvolvida pela EBC e pelo Conselho Curador da empresa como instrumento preferencial para garantir, de forma democrática e transparente, a participação dos produtores audiovisuais independentes. A proposta previa que os assuntos explorados abrissem um espaço plural de debate e reflexão acerca das crenças presentes no Brasil, garantindo o respeito à pluralidade previsto na lei de criação da EBC.

A opção pelos concursos refletia o processo de elaboração de uma política para a programação religiosa das emissoras da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que durou anos e foi iniciada pelo Conselho Curador, a partir de demandas recebidas pela Ouvidoria da EBC. A Faixa da Diversidade Religiosa foi pensada nesse contexto, a partir de uma consulta pública e uma audiência que levaram à criação de um grupo consultivo sobre a temática, composto por diversos segmentos da sociedade, criado em março de 2012 pelo próprio Conselho Curador. O grupo foi extinto somente em fevereiro de 2019, após boa parte dos programas terem ido ao ar.

Naquela época, o Conselho Curador, órgão formado por maioria de representantes da sociedade civil e que garantia algum controle social à comunicação pública, entendeu que a divisão do tempo disponível entre as religiões seria de difícil implementação, uma vez que poucas denominações, como a Igreja Católica, têm uma organização centralizada. Também foi considerado que seria inviável abrir espaço paras veiculações de celebrações de todas as religiões.

Na ocasião, a presidenta da EBC, Tereza Cruvinel, escreveu artigo destacando que o Estado era laico. Porém, dado o grau de religiosidade da população brasileira, a programação da TV Brasil deveria abordar o tema. “Essa laicidade do Estado deve ser observada pela escola, pelo sistema de saúde e pelos demais serviços garantidos a todos os cidadãos, sem distinção de cor, origem social, credo político ou religioso. Mas não pelos serviços de radiodifusão pública que, onde melhor floresceram, como na Europa, têm compromisso com a expressão da diversidade e da pluralidade. Sendo públicos, estão a serviço da sociedade (não do governo ou do Estado). Desses canais deve-se cobrar a garantia de espaço para todos os credos. A TV Brasil e a Rádio Nacional herdaram programas que atendem a apenas duas religiões e, na minha opinião pessoal, deveriam garantir também espaço para seguidores do espiritismo, da umbanda, do candomblé e de outras religiões de grande penetração”[12].

Dessa forma, a crítica à novela Os Dez Mandamentos não tem a intenção de excluir a programação religiosa da TV Brasil, mas de garantir espaço proporcional a outros credos e denominações que não o tem. À luz dos acontecimentos, o licenciamento da telenovela bíblica é um retrocesso. A diversidade religiosa, mesmo dentro do cristianismo, em diferentes linhas do catolicismo, do protestantismo e mesmo do neopentecostalismo, nem de longe encontra o mesmo espaço que hoje a IURD tem à disposição no sistema comunicacional brasileiro. 

A EBC deve cumprir sua missão Constitucional e continuar com a estratégia de dar espaço e financiar produções culturais sobre religião, em complementaridade às emissoras comerciais. Cabe destacar que a novela da TV Record recebe destaque no horário nobre e ampla divulgação nas redes sociais da TV Brasil, nos outros veículos da empresa e mesmo em painéis eletrônicos em grandes espaços públicos, atenção que jamais foi dada a nenhum outro programa religioso da própria emissora pública. Tampouco, não há previsão de outro concurso ou linha de financiamento público para a compra de conteúdos inéditos dentro dessa temática.

Resta evidente que destinar recursos da TV Brasil para uma emissora do porte da TV Record não encontra base legal. É um desvirtuamento da Constituição e da radiodifusão pública. A TV Brasil, por lei, tem o papel de fomentar a diversidade, estimular a produção independente e atuar de forma a movimentar a indústria audiovisual nacional, o que não se observa na compra da telenovela em questão.


Entenda o imbróglio judicial para retirada de programas religiosos do ar

Em março de 2011, o Conselho Curador da EBC aprovou uma resolução para a suspensão dos programas religiosos a partir de 23 de setembro daquele ano, na TV Brasil e no sistema de rádios. No entanto, a Arquidiocese do Rio de Janeiro entrou com um pedido na justiça para evitar que a transmissão da Santa Missa e do programa Palavras de Vida fosse interrompida. Dias antes da resolução do Conselho entrar em vigor, a Justiça Federal no Rio de Janeiro concedeu liminar favorável à Arquidiocese e manteve no ar a missa e, por extensão, o culto da Igreja Batista.

A ação foi julgada como procedente e a resolução do Conselho Curador invalidada. A empresa recorreu da decisão. Não temos informações atualizadas sobre o processo.

Outro processo foi ajuizado pela Primeira Igreja Batista da Ilha da Conceição. A justiça também deu ganho de causa à Igreja. De acordo com a Procuradoria da EBC, segundo informou à Ouvidoria da empresa na época, após a apelação da EBC, foi firmado acordo com a Primeira Igreja Batista e o processo foi encerrado.

Em 2016, em uma análise por amostragem divulgada no Boletim 260, a Ouvidoria da EBC apontou com exemplos que esses programas fazem proselitismo político- eleitoral na TV Brasil. “Temos motivo para acreditar que os programas religiosos ferem regularmente os princípios que regem a comunicação pública”, alertava.

No entanto, até hoje, os programas Reencontro (evangélico), Palavras de Vida (católico) e a Santa Missa (católico) permanecem no ar, aos domingos. 


[1] https://telepadi.folha.uol.com.br/venda-de-dez-mandamentos-da-record-para-a-tv-brasil-nao-tem-precedentes/ Acessado em 14/04/2021

[2] https://veja.abril.com.br/blog/tela-plana/passando-a-boiada-no-ar-record-emplaca-os-dez-mandamentos-na-tv-brasil/ Acessado em 13/04/2021

[3]  https://tvpop.com.br/3543/os-dez-mandamentos-volta-para-a-programacao-da-record/ Acessado em 14/04/2021.

[4] GONÇALVES, Eliane Pereira. (Des)Prezado Público: A disputa pelo direito à diversidade religiosa em uma empresa pública de comunicação. Dissertação de Mestrado, FFLCH, USP, 2016. pags. 143 – 144. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8161/tde-10032017-134917/publico/2016_ElianePereiraGoncalves_VOrig.pdf

[5] https://veja.abril.com.br/cultura/piolhos-dao-recorde-de-audiencia-a-os-dez-mandamentos/  acessado em 13/04/2021; https://www.otvfoco.com.br/os-dez-mandamentos-explode-em-audiencia-e-bate-recorde-em-sp-e-rio/ Acessado em 13/04/2021

[6] https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/audiencias/a-regra-do-jogo-tem-a-pior-estreia-de-novela-das-nove-da-globo-9066 acessado em 13/04/2021

[7]   Souza, Thiago José.A narrativa bíblica no audiovisual: uma análise da tradução intersemiótica na   telenovela Os Dez Mandamentos. Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2017. Pag. 95. Disponível em : https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/152617/souza_tj_me_bauru.pdf?sequence=3&isAllowed=y

[8] O termo é utilizado para designar produções culturais que substituem pessoas de outras etnias (pretos, pardos, asiáticos, entre outras) por pessoas brancas.

[9] Curso de Comunicação pública: fortalecimento da sociedade e da democracia. 2ª aula. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ShWbSmo-cNs Acesso em 13/04/2021

[10] https://www.ebc.com.br/conselho-curador/noticias/2014/01/empresa-vence-pitching-para-produzir-o-programa-diversidade Acesso: 13/04/2021

[11] https://www.ebc.com.br/sobre-a-ebc/prodav-tvs-publicas Acesso: 13/04/2021

[12] http://memoria.ebc.com.br/portal/content/estado-laico-m%C3%ADdia-p%C3%BAblica-e-diversidade-religiosa-tereza-cruvinel Acesso:13/04/2021.

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