Por uma EBC participativa e portadora do imaginário democrático brasileiro

Um projeto estruturado de comunicação pública tornou-se um sonho no segundo mandato do presidente Lula, quando o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória que deu criação à Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Esta nasceu com instrumentos de autonomia – mandato para presidente, Conselho Curador e Ouvidoria – e viabilidade inicial assegurada pela criação da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP) pela Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008.

Para um país que praticamente só conheceu a comunicação privada, desconsideradas experiências locais como a TV Cultura de São Paulo, a EBC com seu alcance nacional foi criada para fazer cumprir-se o princípio constitucional de 1988, que estabelece que o Brasil deve contar com um sistema de complementaridade na comunicação: o privado, o estatal e o público.

A nova empresa de comunicação pública nasceu forte, ao reunir as emissoras e agências operadas pela Radiobrás (Rádio Nacional, TV Nacional de Brasília, Agência Brasil e Radioagência Nacional) e as geridas pela Acerp (Rádio MEC e TVE RJ e MA). E com uma missão estratégica: articular uma rede nacional de comunicação pública, que também passava a ser beneficiária da CFRP.

Separadamente de sua natureza de empresa de comunicação pública, a lei também atribuiu à EBC a prestação de serviço ao Governo Federal em canal próprio – a TV NBR, além da Rede Nacional de Rádio e de programas como A Voz do Brasil, Café com o Presidente e Bom dia, Ministro. Mas isso são serviços, e não a missão principal da empresa.

Os problemas de um projeto recém-criado, inclusive empecilhos para acesso ao financiamento, não impediram o bom funcionamento inicial da EBC. Contribuiu para isso o compromisso de um corpo de trabalhadores que passou a se aprofundar nos conhecimentos acumulados sobre comunicação pública – com muitos hoje contribuindo em universidades, por meio de projetos de pesquisa e investigações em nível de doutorado e mestrado.

Mas o golpe contra a democracia, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, foi seguido também por um golpe no princípio de complementaridade da comunicação previsto na Constituição de 1988. Por Medida Provisória (MP), editada pelo então presidente Michel Temer, que depois foi transformada em lei pelo Congresso Nacional, todos os mecanismos de autonomia da EBC foram extirpados da empresa, que tornou-se apenas um braço governamental, na prática.

Na ocasião, foram extintos o mandato do diretor-presidente da empresa e o Conselho Curador, substituído por um arremedo de mecanismo de participação, batizado de Comitê Editorial e de Programação, desprovido de qualquer caráter deliberativo, com viés meramente decorativo, e que sequer foi instituído até os dias atuais. Prova da desconfiguração da EBC, já sem os instrumentos de controle, foi a decisão do TSE que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível por ter cometido crime eleitoral transmitido ao vivo pela TV Brasil.

Antes disso, ainda em 2019, o governo Bolsonaro já havia unificado a programação das emissoras pública e governamental (NBR), misturando ainda mais a presença da comunicação de governo sobre o que deveria ser uma comunicação pública, sem proselitismo. Tornaram-se rotina as interrupções de programação da TV Brasil, a emissora pública, incluindo a faixa horária infantil, para a exibição de eventos ao vivo com o presidente da República, o que deveria ser exclusivo do canal oficial.

A volta do presidente Lula ao governo em 2023 trouxe novamente as esperanças. Durante seis anos, organizações preocupadas com a comunicação pública mantiveram a vigilância e a denúncia dos sucessivos desmontes da EBC, através da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, criando inclusive uma Ouvidoria Cidadã da EBC e realizando debates, cursos e seminários. Esse acúmulo foi sintetizado no Caderno Reconstrói a EBC e a Comunicação Pública e nas contribuições entregues ao governo pelo Grupo de Transição sobre a comunicação pública.

Entre as contribuições, as principais eram as de retomada do projeto com a separação entre sua missão de comunicação pública e o serviço prestado ao governo, bem como a volta do Conselho Curador. O jornalismo público deveria ser fortalecido. A programação precisaria contemplar os movimentos culturais periféricos e sua produção, que hoje está sem apoio. A luta ambiental deveria ser travada com inclusão das vozes originárias das florestas, regiões e ambientes afetados – hoje sem canais públicos ao seu alcance, assim como as lutas por direitos e contra as desigualdades. O papel da comunicação pública na cena internacional também foi reivindicado como estratégico na defesa da soberania. A EBC deveria ser portadora do imaginário democrático, participativo e inclusivo, livre das amarras de mercado ou político-partidárias. Ao mesmo tempo, um forte movimento reivindicava o enegrecimento da EBC, a começar pela sua direção.

A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 expôs a timidez da EBC, ainda sob a gestão deixada pelo governo de Bolsonaro, na cobertura dos eventos que colocaram em risco a democracia brasileira. Estava claro que o projeto de comunicação pública deveria ser retomado, começando pela troca imediata da gestão. Essa transição foi iniciada com ajuda de duas lideranças trabalhadoras da Casa, uma ex-conselheira e presidenta do Conselho Curador cassado e duas assessoras do governo, durante brevíssimo período de tempo, até que o governo anunciou uma nova diretoria, sob o comando do jornalista Hélio Doyle.

Das imensas expectativas, vieram as primeiras grandes frustrações. Desfalcada em recursos, estrutura e pessoas durante o governo bolsonarista, a EBC passou por um redesenho, no qual a comunicação pública foi a principal sacrificada. Mais de duas dezenas de cargos do jornalismo público foram transferidos para o serviço governamental. Além disso, apareceram distorções como o fato de o setor de Comunicação Institucional ter ganhado uma gerência executiva enquanto o mesmo cargo foi retirado da principal agência de notícias da EBC, a Agência Brasil, só para citar um exemplo esdrúxulo de como esse processo foi feito sem um crivo técnico adequado.

A prometida separação entre o público e o governamental aconteceu apenas em julho, com a estreia do Canal Gov, separado da TV Brasil, e da Agência Gov, também dentro da EBC. Isso foi feito às custas da parte pública – ainda mais desfalcada -, sendo que esta continua à mercê de decisões de governo e cedendo funcionários para a parte governamental.

A participação social na governança, o que caracteriza uma empresa de comunicação pública, não foi retomada. Nem mesmo um instrumento figurativo, como o Comitê Editorial previsto na Lei de Temer, foi instalado. E isto, considerando que a empresa já foi instada pelo Ministério Público a cumprir a lei e nada fez nesse sentido, de maneira que neste momento a EBC segue sem qualquer instrumento de participação social. Nesses oito meses de governo, decisões importantes foram tomadas na empresa sem qualquer debate com a sociedade civil, como o fim dos quatro telejornais locais e a realização de um pitching para reformular as grades da TV Brasil e das rádios. Decisões de gabinete que afastam a empresa do cumprimento de sua missão pública.

Trabalhadores se queixam da repetição de problemas que deveriam ter ficado no passado, como a manutenção em cargos de chefia de servidores que promoveram assédio e censura na gestão passada, totalmente alinhada ao bolsonarismo.

Na Ouvidoria, permanece um militar de carreira nomeado no apagar das luzes do governo passado para esse cargo fundamental na interlocução dos setores da empresa com a sociedade. As análises críticas previstas na lei, que estavam aquém do desejável e minimamente crítico, simplesmente deixaram de ser feitas – um papel que a sociedade civil precisou assumir com a criação da Ouvidoria Cidadã da EBC.

É desconcertante como as falas vindas da gestão da EBC mostram desconhecimento do que seja comunicação pública. O equívoco começa por chamar de pública uma parte da empresa que ainda é totalmente governamental. A empresa passará a ser pública quando o controle público for restabelecido, com um Conselho deliberativo, representativo das regiões, diversidade étnica-racial e de gênero, bem como a inclusão de qualificações técnicas e conhecimento acadêmico mediante consulta pública.

Lembramos que a participação social foi um aspecto enfatizado pelo governo Lula ao recompor e criar conselhos de participação em diversos setores sociais, inclusive com o “Conselhão”. A participação na comunicação passa, evidentemente, por entraves políticos que inibiram, até agora, o envio de uma Medida Provisória ou Projeto de Lei para que um conselho deliberativo na EBC seja instituído. Mas a vontade política da retomada democrática deve ser maior do que eventuais entraves. E a EBC é parte dessa retomada.

Retomar os mecanismos de autonomia da EBC, recompor a força de trabalho reduzida desde 2016 e assegurar recursos para que a EBC volte a cumprir seu papel na condução de um projeto de comunicação pública para o Brasil são providências urgentes para reverter o golpe que feriu esse projeto quase de morte, ao mesmo tempo em que assombrou nossa democracia.

Esta nota pública expressa nosso estranhamento pelo tardar do resgate da EBC, que continua sem um projeto minimamente consistente, mas é também uma manifestação de esperança e compromisso com a sua reconstrução. Nos manifestamos aqui para mais uma vez abraçarmos a EBC e nos colocarmos à disposição do governo, parlamentares, gestão e segmentos democráticos da sociedade para que a nossa jovem empresa de comunicação pública volte a cumprir sua missão, a servir nossa democracia e a soberania nacional.

Oito meses após o início do governo Lula, a EBC segue sem fazer comunicação pública, já que sem participação da sociedade. A pergunta que fica é: até quando?

FRENTE EM DEFESA DA EBC E DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA

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